Democracia e capitalismo: duas coisas incompatíveis


capitalismo e democracia

A democracia é um regime familiar a todos nós, acostumados que somos a associá-la automaticamente ao sistema capitalista/liberal no qual nascemos inseridos. Pensamos logo que ambos se completam e sempre estiveram juntos, numa perfeita simbiose. Mas será que isto corresponde à realidade? Será que estes dois sistemas realmente sempre andaram lado a lado como valores universais? E mais, será que são sistemas compatíveis?

Um pouco da história

Teoricamente, o regime democrático é o sistema onde o povo é soberano de si mesmo, elegendo, através do voto, os representantes que governarão em seu nome (no caso, a democracia representativa, a que foi prestigiada em detrimento da democracia direta). O sistema capitalista liberal, por sua vez, se impôs como sistema econômico predominante no mundo a partir das Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII.

Como todos sabem, a democracia nasceu em Atenas, há mais de 2.500 anos. Nem de longe era um sistema que contemplava todos os homens e mulheres de forma igualitária. Existiam camadas sociais bem definidas, e somente os cidadãos do sexo masculino com alguma posse podiam participar das discussões e votações (democracia direta). Quando os capitalistas do século XVIII e XIX resolveram resgatar este regime de governo para contrapor ao absolutismo monárquico, era exatamente esta a essência da democracia que eles queriam conceber: representantes das classes dominantes votariam e se candidatariam através do voto qualificado; ou seja, o cidadão deveria preencher alguns requisitos, como ser membro da aristocracia, ser homem, ter terras e outros bens. Isto podia ser tudo, menos "povo".

Democracia ou plutocracia?

Este tipo de voto censitário — e excludente — está na origem do que veio a ser chamado de democracia liberal, que serviu para eleger durante décadas e, até hoje, na verdade, apenas os seletos membros de uma pequena elite econômica, que logicamente tratavam dos seus interesses pessoais acima do bem comum no exercício do poder, embora teoricamente exercessem esta função em nome do“povo". Durante este período de implementação e disseminação do capitalismo pelo mundo, o retrato desta situação não lembra nem de longe o que entendemos por democracia hoje.

De acordo com o professor de História Europeia Comparada no Queen Mary and Westfield College da Universidade de Londres, Donald Sassoon:

A transformação das sociedades de pré-modernas em modernas, pelo menos em sua fase inicial, raramente foi acompanhada por democracia e direitos humanos no sentido adquirido no século XX. Mesmo na Inglaterra ou nos EUA, sem falar da Alemanha e do Japão, o padrão era tal que o sufrágio era inexistente ou rigorosamente restrito, as liberdades seriamente limitadas, os sindicatos banidos ou submetidos a um controle rígido. Em alguns casos o processo coexistiu com escravidão e genocídio (os EUA), racismo, colonialismo, autoritarismo rígido (por exemplo, Japão) e regimes de partido único (por exemplo, Taiwan e Coréia do Sul até tempos relativamente recentes)¹

Conquistas democráticas custaram sangue e suor do trabalhador

Fica claro perceber que o capitalismo/liberalismo de então, pouco tinha a ver com o que entendemos hoje por democracia. Precisamos saber que as conquistas democráticas contemporâneas se devem a lutas politico-ideológicas. A defesa dos ideais sociais ficou a cargo dos comunistassocialistas e também dos anarquistas no começo do século XX, que, aonde tiveram alguma representação, estiveram na vanguarda da defesa dos direitos humanos e da democracia, apesar de toda a reação e a antipatia dos partidos liberais, cristãos e conservadores. É assim que depois de muito tempo, as mulheres puderam ter o direito de votar, por exemplo. Os socialistas entendiam que os objetivos imediatos a serem alcançados, de acordo com Sassoon, eram três:

A primeira era a democratização da sociedade capitalista [com a implementação, entre outros fatores, do sufrágio universal], a segunda se referia à regulação do mercado de trabalho (por exemplo, a jornada de 8 horas) e a terceira à socialização dos custos de reprodução do trabalho: saúde pública gratuita, aposentadorias e pensões, seguridade nacional – em resumo, os custos que teriam que ser absorvidos pelos trabalhadores individuais. Este terceiro objetivo é o que conhecemos atualmente como o Estado do Bem-Estar²

Em maior ou menor grau, com mais rapidez ou morosidade, estas conquistas foram se consolidando nas sociedades capitalistas do ocidente, graças ao empenho dos trabalhadores, dos partidos de esquerda e dos sindicatos pioneiros

Por que associaram capitalismo e democracia

Ao longo do século XX, entretanto, a ideologia burguesa/capitalista, através da mídia corrompida e dos livros tendenciosos, deu o contra-ataque. Passou a tachar de totalitários todos os governos que tentassem contrapor uma alternativa à supremacia absoluta do mercado. Tal propaganda incisiva serviu para apagar um pouco esta parte importante da história do socialismo, e a "democracia" passou, em contraponto, a ser falsamente associada ao liberalismo político, não obstante os inúmeros golpes de Estado em governos democráticos patrocinados pela CIA e as inúmeras ditaduras de direita em favor do capitalismo, como a franquista, a nazista, as da América Latina, etc.

Para os teóricos liberais de hoje, basta um país apresentar eleições regulares e instituições com poderes separados para ganhar o selo de qualidade da "democracia". Para eles, pouco importa as discrepâncias econômico/sociais dos indivíduos e o abismo que separa os anseios de governantes e eleitores, patrões e assalariados. Este sistema, democrático-representativo, apesar das contribuições das lutas políticas ao longo dos últimos séculos, ainda apresenta imperfeições que somente uma nova reformulação seria capaz de corrigir. A verdade é que capitalismo e democracia liberal são incompatíveis e autoexcludentes. Não se pode pensar em bem-estar social, quando o lucro está acima de todas as coisas. Para gerar a justiça social e a igualdade prometidas nas revoluções burguesas do passado, o Estado não poderia tolerar donos privados dos meios de produção, e portanto, não poderia haver capitalismo nos moldes liberais.

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1 - Trecho de artigo originalmente publicado no Journal of Political Ideologies, v. 5, 1, 2000. Tradução: Luiz Sérgio Henriques.

2 - idem.






Comentários

  1. Claro que o Governo/Estado pode criar empregos, em economias Socialistas todas as empresas pertencem ao Estado ou estão sobre sua forte intervenção.

    O problema é que em economias desse tipos não vemos os salários ou a prosperidade que encontramos nas economias com Capitalismo/Liberalismo de boa qualidade.

    Na economia Liberal os grandes criadores de postos de trabalho são os empreendedores.

    Vou juntar todas as pontas desse texto, preste atenção.

    Suponhamos que você trabalha em um hospital particular.
    Seu emprego só existe porque um empreendedor decidiu/conseguiu montar essa empresa.
    Se visivelmente a empresa é altamente lucrativa e ainda assim paga mal seus funcionários (salários abaixo do mercado), em pouco tempo ela terá problemas, os melhores profissionais acabam indo para a concorrência, a empresa deixa de ser boa ou tão lucrativa.

    Se você quer aumento de um patrão mão de vaca o primeiro passo é a negociação.
    Você ou algum representante da sua categoria conversa com seu patrão sobre a melhoria das condições de trabalho e salario.
    Se as negociações não chegam a um bom termo daí usamos a força da greve.
    Qualquer um que analisar a história recente da humanidade verificará que tanto as negociações quanto as greves só são possíveis e eficientes em nações satisfatoriamente democráticas com liberdade de expressão.

    Se você pesquisar verá que as conquistas trabalhistas surgiram nas nações mais Liberais/Capitalistas de cada época e não nas Socialistas/Comunistas.

    Em países comunistas ou monarquias absolutistas você não tem liberdade de expressão para reivindicar nada.
    Aceita o que o Estado lhe oferece ou é considerado um “traidor da pátria” o que terminará em pena de morte ou prisão.

    O Rei te joga no calabouço, o Líder Supremo do partirão te manda para campos de concentração/reeducação.

    Qual a última greve trabalhista que você lembra ter ocorrido em Cuba ou Coréia do Norte?

    Notamos claramente que as melhoras nos salários e condições de trabalho foram possíveis com o grande ganho de produtividade trazido pela Revolução Industrial e pelo Capitalismo.
    E os avanços se concretizaram graças a Democracia e sua liberdade de expressão, possibilitando negociações e direito de greve.

    Entendam que não estou desejando o fim dos Sindicatos. Tem que haver negociações e é mais prático ter reperesentatantes democraticamente eleitos.

    Acontece que os Sindicatos no Brasil [E boa parte do mundo] lutam para implantar o Socialismo/Comunismo é isso que sou contrário.
    Sindicatos querem estatização generalizada, apoiam partidos sempre de esquerda ... quanto mais esquerda melhor (PSOL, PSTU, PC do B...)
    Para sindicalistas, empreendedores não são trabalhadores, são da “classe” dos empresários os seres mais terríveis, insensíveis, egoístas que já habitaram esse planeta...
    Em países Capitalistas eu quero Sindicatos Capitalistas, é pedir demais!?
    Sou trabalhador e não quero ver implantado em meu país a estatização generalizada, o Comunismo/Socialismo.
    Observo que trabalhadores em países liberais tem muito mais prosperidade e qualidade de vida.
    É isso que quero para eu e minhas filhas.
    Quero inclusive ter a possibilidade de abrir minha própria empresa sem ser demonizado por isso ou ver a empresa estropiada pela cobrança abusiva de taxas e impostos como se eu fosse um inimigo da economia por gerar emprego e renda.
    Para trabalhadores iguais eu... QUEM NOS REPRESENTA!?

    http://terapiadalogica.blogspot.com.br/2015/10/conquistas-trabalhistas.html
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