IFSUD: religião do medo

Não me ocorre outra palavra para descrever o que acontece com os membros da seita cristã Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IFSUD) nos Estados Unidos: escravidão. E isso fica bem claro na narrativa biográfica de Elissa Wall em seu livro Inocência Roubada, que acabo de ler.

Elissa foi nascida e criada dentro dessa seita poligâmica. Sua mãe fora dada a seu pai, que já era casado, para ser sua segunda esposa, de acordo com os costumes, pelo profeta, a autoridade máxima que, entre outras funções, arranja casamentos seguindo supostas revelações de Deus. O livro relata a infância de Elissa numa casa repleta de irmãos – somente de sua mãe ela tinha 11 irmãos e 12 irmãs, fora os das outras duas esposas de seu pai – e descreve uma rotina absolutamente controlada pela religião.

Homens e mulheres entregam igualmente o destino de suas vidas ao profeta, tanto com relação ao casamento, quanto a decisões básicas sobre o que poder fazer nas horas de lazer, o que comer, quando viajar, entre outras coisas. Ele pode simplesmente desfazer uma família inteira ao dar as esposas e os filhos de um homem a outro fiel da religião, como forma de castigo, sem levar em conta o trauma que isso representa para as crianças. Mas as mulheres são muitos mais dominadas, e o profeta exige delas subserviência total, obediência cega e entrega sem questionamentos. É, sem sombra de dúvidas, uma das mais extremas religiões patriarcais, misóginas e machistas que existem hoje, totalmente elaborada para colocar os homens em ampla posição de privilégio em relação às mulheres.

Isso só é possível porque, criadas desde pequenas na cultura fundamentalista da IFSUD, as mulheres acreditam piamente que a salvação de suas almas está condicionada a ser uma esposa submissa a seus maridos. O reino do céu não está garantido a elas diretamente, mas sim apenas como acompanhante de maridos, desde que elas tenham sido obedientes o suficiente.

Elissa Wall, repentinamente, soube que seria obrigada a se casar aos 14 anos de idade com seu primo de primeiro grau. E a partir daí o livro relata toda a angústia de uma jovem que luta desesperadamente para fugir desse destino arranjado, sem o menor sucesso, pois a opinião das mulheres sobre suas próprias vidas não vale absolutamente nada naquela cultura de submissão.

Atenção, spoilers a seguir

Pra resumir a história, Elissa conhece um outro rapaz renegado da religião, como tantos outros, expulsos e entregues à própria sorte, e foge com ele. Ela então é incentivada pelas autoridades a denunciar todos os abusos que sofreu no casamento forçado por cumplicidade do profeta Warren Jeffs. O profeta é condenado a 10 anos de prisão e Elissa passa a viver a sua vida normalmente longe da religião.

*   *   *

Pra alguém, como eu, que já tem enormes desacordos com todo tipo de religião, ler esse livro é um exercício de autocontrole, devido a minha completa indignação com os relatos de abusos, lavagem cerebral e ignorância a que os membros da IFSUD estão expostos naquelas comunidades em Utah. Mas o que realmente me deixa frustrado não é essa realidade local, e sim que as religiões monoteístas do mundo inteiro pratiquem o mesmo tipo de controle sobre seus seguidores, embora de forma bem mais suavizada pelo convívio com o mundo laico. Por isso, pode parecer que os católicos e os evangélicos não passem por esse tipo de situação, mas passam sim. São doutrinados, são controlados, induzidos a pensar de acordo com a cabeça de terceiros, e fazem tudo isso pelo mesmo medo do que vem após a morte. Medo que é devidamente explorado por líderes religiosos, que no fundo, apenas pretendem garantir para si dinheiro, status e poder.

Por isso que as sociedade mais avançadas aos poucos abandonam essas ilusões escravizantes, enquanto que em outros lugares, mais pobres, menos educados e portanto terrenos potenciais para seitas supostamente salvadoras, elas proliferam como praga.

O único lugar onde essa caracterização não se aplica perfeitamente, é justamente nos Estados Unidos, onde a educação é relativamente elevada, a cultura científica está muito bem assentada, e ainda assim, existem bolsões de ignorância religiosa, como a IFSUD.

Não adianta apelar para alguma tentativa de relativização desses fenômenos. Elas são exatamente o que são: uma forma de controlar a mente e de submeter a vontade das pessoas através do medo.





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