Conflitos de classes nos hospitais públicos brasileiros


Nunca a imagem dos médicos esteve tão arranhada no Brasil. Nem tanto pela recente oposição desses profissionais à vinda de colegas estrangeiros ao país, para cobrir o enorme déficit de médicos pelo interior – onde se recusam a trabalhar, sob as mais variadas desculpas –, mas pelos inúmeros casos de frieza, descaso, faltas, fraudes em plantões, negligência e indiferença que vieram à tona por todos os lados – e que fizeram até o Ministério da Saúde dizer recentemente que era preciso “humanizar” os profissionais no trato com seus pacientes.

No seu livro já bastante citado por aqui, A Ralé Brasileira – Quem é e como vive, o professor Jessé Souza abre espaço na segunda parte da obra aos autores colaboradores, como Lara Luna, doutoranda em Sociologia Política pela UENF, que traz casos reais daquilo que Jessé trata teoricamente na primeira parte do livro: as diferenças e preconceitos de classes que se refletem dentro das diversas instituições – aqui, no caso, nos hospitais públicos entre doutores, enfermeiros e pacientes, cada um deles representante de uma determinada classe social.

Reflexo do que acontece na sociedade


As más condições de atendimento são reflexo das desigualdades sociais de séculos no nosso país, que segregam e classificam os cidadãos na sociedade, exatamente como acontece com os doentes nos hospitais. O mal funcionamento do serviço público de Saúde tem de ser analisado, portanto, tendo em vista o seu "público-alvo”, ou seja, as classes mais baixas da sociedade. As debilidades dos hospitais públicos estão perfeitamente afinadas com a desigualdade social, reproduzindo-a cotidianamente.

Um estudo de caso


No capítulo 13, intitulado “Fazer viver e deixar morrer – a má-fé da Saúde Pública no Brasil”, Luna traz o esclarecedor relato da estagiária chamada no livro de “Aline”, que na época estava concluindo a faculdade de Serviço Social e estagiava no pronto-socorro de um grande hospital público do Rio de Janeiro. É quando temos uma exata noção do tratamento desumano a que estão sujeitos milhões de pessoas pobres no Brasil, tratados de forma indigna apenas por serem membros das classes mais baixas.

Aline conta o caso que aconteceu durante a conversa com uma paciente idosa que havia se acidentado junto com o marido, ambos instalados precariamente no corredor do pronto-socorro. Ela com o braço quebrado, o marido com um colete para imobilizar a coluna. A mulher interrompe a conversa quando avista um médico passando. Como o colete do marido estava mal colocado, provocando dores, a mulher pediu ao médico que o ajudasse. Assim Aline prossegue contando no livro:


O médico gritava com o paciente: “Você tá vendo isso daqui? O colete é para imobilizar. I-MO-BI-LI-ZAR! Sabe o quê que é isso?”. Ele falava gritando com o paciente. Aí ele [o paciente] falou assim: “eu sei, mas…”. O cara não conseguia nem falar! “Eu sei, mas não sei como é que coloca! Você pode me ajudar?” [retruca o paciente humildemente]. Aí fazia assim com força no colete [gesticula o movimento do médico]! O cara gritava de dor: “Tá doendo!”. “É pra doer! Pra você aprender a não tirar do lugar!” [médico]. “Mas eu não tirei!” [responde temeroso o paciente]. O cara não tinha como tirar o colete porque ele estava sem força nenhuma! “E esse colete”… ele explicou gritando, que não havia a menor necessidade, “o colete é para imobilizar pra você não sentir essa fraqueza que está sentindo nas pernas. Você nunca mais vai andar se o colete não ficar no lugar certo, então você deixa ele aqui”
A esposa do paciente, tentando amenizar a situação, dirige-se ao médico:


“Então me explica pra quê que serve esse colete, como é que ele deve ficar, que eu não vou mais chamar o senhor não! Você pode ficar calmo, é só me explicar como é que coloca!”. Aí ele falou com a mulher: “Ouve o que eu tô falando! Você tem que me…” [o médico aos gritos]. Aí ela falou assim: “Mas eu tô ouvindo!”. “Você não tem que falar que tá ouvindo e nem responder nada, só tem que ouvir, cala a boca e escuta! O colete é pra ficar assim!” [mexe no colete com violência]

Todos os pacientes em volta consentiram com a humilhação, porque no fundo, ali ninguém estava em condições de confrontar aquele que agrega em si “o poder maior de controlar a vida”, e que possui tamanha autoridade e prestígio. A grande maioria dos pacientes advém das classes mais pobres enquanto que os médicos geralmente vêm das classes privilegiadas, o que gera o sentimento de hierarquia e preconceitos.

Esse foi o momento em que a Aline sentiu como era o universo dentro de um hospital público. É um grande esforço de assistentes sociais em garantir o menor dos direitos e algum bem-estar para esses pacientes, por conta da má-vontade de uns, em burocracias que emperram às vezes uma transferência, falta de material de trabalho, enfim, fatores comuns no dia a dia dos hospitais públicos.

Os conflitos de classe


O funcionamento da unidade médica favorece a ocorrência de conflitos entre os próprios profissionais da área, devido a uma hierarquização de funções de acordo com a “importância”.

Nessa “luta de classes” dentro dos hospitais, ainda há os auxiliares de enfermagem, que dentro da nossa escala de comparação com as classes sociais, podem ser considerados a “pequena burguesia”, pois possuem certo conhecimento incorporado (capital cultural), além de uma situação econômica mais confortável do que a maioria dos pacientes. O conflito se dá por esses profissionais estarem social e geograficamente mais perto das “ralés”, o que lhes incomoda e que por isso os fazem lutar para se desvincular dessa classe estigmatizada. Segundo Lara Luna,


…dispensar um tratamento ‘pouco humanizado’ ao desamparado pela família, bandido, alcoólatra ou mulher de ‘vida fácil’ é, ainda que não refletidamente, a forma mais comum que o profissional da pequena-burguesia tem para assinalar um distanciamento em relação a esses estigmas e com isso a recorrente e desesperada tentativa de evitar seu próprio rebaixamento como pessoa.

A grande questão central é a inexistência das classes baixas como cidadãs portadoras de direitos no Brasil. Dessa forma, o esquecimento da “ralé” enquanto classe se reflete nas falhas dos serviços públicos dos quais é dependente, como os hospitais. Assim reitera-se cotidianamente a desigualdade social dentro dessas instituições, onde as elites insensíveis, representadas por alguns médicos, fazem da indiferença ou da brutalidade a sua arma contra as classes baixas. Alguma coisa precisa realmente ser feita para humanizar o atendimento à população. A começar por profissionais que deveriam trocar de profissão.





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SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira – Quem é e como vive. Ed. ufmg, Belo Horizonte: 2011. pp. 305-327




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