GLO: na falta de uma guerra, as Forças Armadas se tornam polícia

 

Exercito no papel de policia

Há quem sempre diga que o Brasil precisava de uma guerra. Mas uma guerra de verdade, contra um inimigo externo, para por as nossas Forças Armadas em ação num evento para as quais foram essencialmente designadas. A única que de fato travamos, a Guerra do Paraguai, não é algo assim que possa nos encher de orgulho, mas serviu para que o Exército criasse uma certa consciência de classe, por assim dizer. De lá pra cá, somente participações pequenas e de importância questionável nas guerras mundiais. Nenhum grande perigo externo.

Na falta de guerras, começa-se a questionar a necessidade de uma onerosa e pesada força militar. É preciso então criar tarefas para os militares, atividades que podem inclusive ultrapassar sua função constitucional. Além do mais, é sabido que o oficialato do Exército, da Marinha e da Aeronáutica acolhe setores importantes das elites brasileiras, e tal como os cavaleiros medievais, que formavam uma estirpe sustentada pelos camponeses, essa classe precisa ser sustentada pelos impostos dos contribuintes. Mas se não há guerras nem grandes perigos externos, é preciso criar algum evento pra justificar a manutenção de tão custoso aparato – e a boa vida dos generais, brigadeiros, coronéis e afins. 

Antes da Guerra do Paraguai, era comum o Exército atuar na caça de escravos fugidos das lavouras. Depois a instituição ficou um pouco mais orgulhosa, e achou que já não lhe cabia tão desonroso papel. Era hora de se meter nos assuntos internos da nação.

Desde o golpe militar que derrubou a Monarquia brasileira em 1889, as Forças Armadas passaram a se ocupar bastante de política. Já em 1909, Francisco Bernardino da Silva denunciou as constantes intervenções militares alinhadas com os interesses políticos. Atendendo muitas vezes arranjos feitos no topo da hierarquia militar com as elites brasileiras, os militares passaram a atuar com a força das armas nos dissídios políticos ou sociais dos seus compatriotas civis, associando-se às oligarquias, podendo ir até ao massacre, como no caso da Guerra de Canudos, como se fossem capangas dos governadores.

Um pequeno histórico de atuações contra movimentos sociais

A Constituição de 1988 tentou marcar os limites de atuação das Forças Armadas nos litígios nacionais, ao afirmar que a União não intervirá nos Estados. Cabem às polícias militares, subordinadas aos governadores, a preservação do status quo, ou da “lei e da ordem”, como gostam de chamar. Mas, claro, há as exceções na Carta Magna, e uma delas trata da intervenção para “por termo a grave comprometimento da ordem pública”. E aí as Forças Armadas são chamadas a atuar. E aí que a coisa começa a ficar feia.

Em 1991 foi estabelecida a Lei Complementar 69, sobre as normas gerais do emprego das Forças Armadas. A motivação para esta emenda partiu da ocupação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1988, quando tropas do Exército foram chamadas para por fim à greve dos funcionários (imagem acima). Na ocasião, três empregados morreram e mais de cem ficaram feridos na violenta operação.

Em outubro de 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso autorizou o envio de mais de mil soldados do Exército para ocupar a sede da Companhia Vale do Rio Doce no sul do Pará. Foram presos 12 líderes dos garimpeiros do chamado Movimento pela Libertação de Serra Pelada. Era o Exército começando a atuar mais fortemente contra os movimentos sociais.

Em julho de 2000, foi a vez do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) servir de pretexto para o recurso aos militares, quando seus integrantes ameaçaram ocupar uma fazenda do então presidente FHC, em Buritis, MG. Itamar Franco, governador de Minas na época, protestou contra o que considerava uma ofensa à autonomia federativa dos Estados. Mas no fundo, era o Estado brasileiro fazendo as Forças Armadas de polícia particular para atuar sempre contra os movimentos sociais.

Forças Armadas na atuação interna

Hoje fala-se no famigerado documento doutrinário, que contém as orientações para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Trata-se de publicação confeccionada pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) para a regulamentação do uso das Forças Armadas em conflitos internos. Mas foi o não menos famigerado Fernando Henrique Cardoso que fixou, por decreto, em agosto de 2001 as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, extraindo os fundamentos de um parecer elaborado pela Advocacia Geral da União. Numa postura totalmente inconstitucional, já que não era constituinte, FHC conferiu poder de polícia às Forças Armadas.

   Leia também: Forças Armadas contra manifestações

Se formos mais pra trás na história, vamos encontrar similitudes flagrantes entre a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com a Doutrina de Segurança Nacional, que vigorou no Brasil na época da Guerra Fria e que justificou as maiores arbitrariedades contra supostos “inimigos internos”, além de uma ditadura militar. E se quisermos ser ainda mais minuciosos, vamos encontrar em toda a história constitucional do Brasil esse fetiche pela “lei e pela ordem” que não passa de um artifício jurídico para combater as reivindicações sociais dos próprios brasileiros. João Rodrigues Arruda no seu livro “O uso político das Forças Armadas” nos fez o favor de compilar essas características em quase todas as Cartas Magnas brasileiras:

Constituição

Missão das Forças Armadas

 

1824

Art. 145. Todos os Brazileiros [sic] são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independência, e integridade do Império, e defendei-o dos seus inimigos externos, ou internos.

1891

Art. 14. As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior.

 

1934

Art.162 As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem

1937

 Única Constituição que não atribuiu explicitamente aos militares a garantia da lei e da ordem interna.

1946

Art. 177 Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem 

1967

§ 1º Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e os poderes constituídos, a lei e a ordem

 

 

1988

Art. 142 As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e por iniciativa de quaisquer destes, da lei e da ordem

O que justifica a publicação da GLO é justamente intimidar qualquer tipo de manifestação que coloque em risco não a lei e a ordem – um mero pretexto para as possíveis arbitrariedades do Estado contra a população em geral, como era a doutrina da segurança nacional – mas sim o status quo das classes dominantes. Num dos trechos do GLO, pode-se ler: "O Estado, com o objetivo de proteger os interesses da sociedade, poderá agir de forma coercitiva e utilizar-se dos meios necessários para coibir ações individuais ou coletivas" (GLO Ações Repressivas). Mas e quando os protestos são totalmente legítimos? E quando a lei e a ordem são despóticas? E quando a sociedade faz valer o seu direito constitucional de lutar pelos seus próprios interesses nas ruas? Aí são consideradas "forças oponentes". Dela mesma? Claro que não. Das classes privilegiadas que o Estado representa. E o Exército é a sua polícia particular.





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