A trapaça da terceira via

Nem Lula, nem Bolsonaro. Mas o quê?

Terceira via, terceira via, terceira via... Desde que o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva reconquistou o direito de ser candidato a presidente da República — aliado ao fato de ser o líder de todas as pesquisas — que esta estranha obsessão da busca de uma terceira opção toma conta do cenário em diversos setores do país. 

Mas quem são e o que propõem os candidatos até agora identificados nesta denominação? 

Terceira via é um conceito bastante elástico, que vem servindo a diversos propósitos políticos ao longo do tempo. Historicamente, esteve ligada ao fascismo, quando setores reacionários da Europa buscavam uma alternativa econômica e política tanto ao liberalismo quanto ao comunismo. Depois, ressurgiu junto ao peronismo nos anos 40, e a partir dos anos 90, foi apropriada por políticos seguindo a linha do sociólogo inglês Anthony Giddens, a de (tentar) superar a supostamente anacrônica dicotomia "esquerda" e "direita". 

É justamente neste filão que surgem as atuais propostas de políticos brasileiros que não querem nem Lula, nem Bolsonaro, como têm dito em diversas ocasiões. 

Curiosamente, o primeiro político a ser identificado com a terceira via no Brasil, sendo esta sinônimo de uma social democracia modernizadora, nas palavras de Giddens, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, seu projeto "modernizador" foi diretamente colocado a serviço das privatizações neoliberais, além de uma diminuição cada vez maior do papel do Estado em diversos setores da economia. Não teve cara de terceira via e sim de um projeto das altas burguesias alinhadas com o Consenso de Washington para desregulamentar a economia brasileira, bem ao interesse dos grandes capitalistas estrangeiros, naqueles anos 90 pós-socialista. 

Com as seguidas vitórias de Lula, começou, ainda nos idos de 2010, uma campanha bem orquestrada de que a democracia supunha alternância de poder. Neste momento a disputa das eleições já estava consolidada entre PT e PSDB, com Marina Silva trazendo pra si a ideia de uma "terceira via", que significava apenas a rejeição a uma polarização entre dois partidos principais. Coisa que nunca foi problema na chamada (equivocadamente) "maior democracia do mundo", nos Estados Unidos. 

Também não parecia ser problema os tucanos dominarem o governo de São Paulo por várias décadas já naquele momento: simplesmente ignorava-se a necessidade de coerência. Era o PT que deveria abrir mão de sua candidatura amplamente favorita, fruto de um governo muito bem avaliado, para que os tucanos pudessem assumir no "rodízio". Mas e a vontade do eleitor? Parece que não era levada em conta, como também não é hoje. 

Vendo que no jogo democrático estabelecido o PT, não-obstante toda a campanha sórdida martelada diariamente nas mídias contra a reputação do partido, poderia emplacar vários mandatos seguidos, não restou às classes dominantes senão virar a mesa e estabelecer o golpe parlamentar, que tiraria de cena o PT e seu principal representante, Lula, colocado mais de 500 dias na cadeia, fruto de um processo criminoso da Lava Jato, como hoje se sabe. Parecia que a discussão sobre uma alternativa ao PT estava devidamente sepultada, com o caminho aberto para que a chamada "social-democracia", ou seja, os partidos liberais, especialmente o PSDB, pudessem voltar ao poder. 

Só não contavam com o efeito colateral indesejado das acusações de corrupção da Lava Lato: ela atingiu também a credibilidade dos partidos liberais, bem como a classe política como um todo. 

Foi preciso recorrer a uma alternativa de última hora, que na verdade já vinha sendo preparada pelas mídias e seus programas televisivos de gosto duvidoso, como o Superpop e o CQC, para suprir esta lacuna. Ali, a figura exótica do então deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro foi cultivando sua popularidade junto às classes D e E. Depois disso só precisou aparecer no momento certo com o discurso certo para herdar os votos dos desapontados na eleição de 2018. 

Com Lula ainda fora da jogada, ainda havia espaço para a "social-democracia" se colocar como alternativa para a volta da normalidade política num futuro enfrentamento a Bolsonaro nas urnas, nas próximas eleições. O que eles não contavam era com a a soltura de Lula e a recuperação de seus direitos políticos. Automaticamente, o candidato do PT passou a liderar várias pesquisas eleitorais, num sinal de que a população identificou em Lula a única alternativa ao que se tornou o Brasil distópico que vivemos, desde a eleição de Bolsonaro. 

Foi quando o discurso da terceira via, do nem-esse-nem-aquele, da oposição a uma "polarização" voltou à tona na mídia, e entre os prováveis candidatos liberais. 

Não está absolutamente claro o que a maioria deles — Doria, Eduardo Leite, Mandetta —, propõem de diferente de Lula ou Bolsonaro. Ciro Gomes até tem demonstrado ter um programa razoavelmente progressista, mas no entanto, perde seu tempo precioso e escasso tentando igualar negativamente seus principais concorrentes, como se Lula e Bolsonaro representassem o mesmo mal. 

Se formos ver, no entanto, como votam os parlamentares destes candidatos na Câmara, incluindo o próprio PDT de Ciro, veremos que a suposta terceira via corrobora muitas das políticas econômicas neoliberais do governo Bolsonaro, votando junto com o governo. Aparentemente, a terceira via é candidata a ser uma versão mais higienizada de um neoliberalismo nocivo ao povo, em vez de ser uma alternativa às duas candidaturas favoritas... 

Está claro que esta cantilena apregoada por partidos políticos e seus simpáticos porta-vozes da velha imprensa tradicional é apenas parte de uma estratégia que, no entanto, revela mais uma vez o que é o projeto histórico de toda terceira via no mundo: aplicar as diretrizes caras ao capitalismo, mantendo todas as suas estruturas, enquanto dá uma aparência humana à exploração desenfreada dos trabalhadores

Pensando bem, até os governos do PT podem ser enquadrados nessas características. Seus governos serviram justamente para manter as bases deploráveis do capitalismo, enquanto suavizavam suas consequências com políticas sociais. 

Cabe ao Lula num próximo mandato, certamente o último de sua já septuagenária vida, dar realmente motivos para a burguesia odiá-lo, como as burguesias venezuelanas odeiam Hugo Chávez. E no caso deste, com toda a razão.





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