Rebatendo algumas críticas comuns a Pelé (menos uma, indefensável)

Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos. Fonte: TNT Sports

 Falar de Pelé neste momento de luto por sua morte não é uma tarefa das mais fáceis. Como sabemos, Edson Arantes do Nascimento foi uma figura controversa que fez a sua inigualável carreira dentro de um dos esportes mais populares do planeta, suscitando paixões controversas no Brasil no mesmo instante que fazia povos do mundo se curvarem ao seu talento. 

Eu mesmo, durante o tempo em que me entendo por gente, sempre tive muitas críticas ao Rei, críticas essas que foram passando a ser mais relativizadas com o tempo, conforme fui aprendendo importante o ofício de historiador

As comparações do passado com o presente

Isso porque é comum, no percurso das eras, os homens comuns esquecerem a verdadeira importância de figuras históricas, bem como o peso de suas ações na época em que viviam. Os homens comuns podem ter esse esquecimento, o historiador não. É função do profissional que cuida do passado lembrar às novas gerações aquilo que elas, por ventura, venham a esquecer — ou, muitas vezes, ignorar. 

Por este esquecimento, temos discussões totalmente desnecessárias a respeito de comparações entre os atletas do presente com os do passado. Neste cenário, muitos dos que defendem que o futebol de hoje é mais difícil do que o das eras ditas românticas do futebol dizem que Pelé não jogaria no futebol atual — porque, em sua época, os zagueiros eram supostamente ingênuos ou despreparados fisicamente. Eis aí uma primeira defesa que temos que fazer de Pelé. 

Não é um método acadêmico aceitável fazer esse tipo de comparação. Quem critica Pelé quase dá a impressão de acreditar que o chamado atleta do século nasceu nos anos 2000, foi capacitado cientificamente com a preparação física moderna do século XXI e foi assim transportado numa máquina do tempo para brilhar no passado, tendo então esse tipo de vantagem desleal sobre os adversários. 

Na verdade, Pelé é um produto do seu tempo, tendo a preparação física do seu tempo. E se destacou dos demais atletas do seu tempo porque aliava o biotipo privilegiado (e inato, ou seja, não desenvolvido em aparelhos de academia) com um talento genial. 

Na disciplina história, elaborar essas hipóteses alternativas para comparar coisas impossíveis — como, por exemplo, "será que Pelé jogaria tudo isso hoje em dia?" — é chamada de história contrafactual e é desprestigiada por historiadores como método de explicação razoável. Mas é totalmente legítimo fazermos um exercício mental para dizermos: sim, com a preparação física atual, Pelé muito possivelmente seria o maior dentre os jogadores da história. 

No entanto, se a preparação física é a chave para os seus críticos duvidarem de Pelé, podemos inverter a dúvida e perguntar se os atletas do presente, num momento onde a preparação física suplantou em muito o talento, teriam condições de jogar no passado, quando a ciência da medicina esportiva e da preparação física, por estarem em seus momentos rudimentares, não poderiam ajudá-los a jogar o futebol que jogam hoje. 

O Pelé que não se metia nas causas sociais de verdade

Saindo da área esportiva e indo para a política, Pelé sempre foi muito criticado, pelo menos no Brasil, por não se engajar politicamente em questões sociais. Deveria Pelé, como homem negro e vindo da pobreza, ser mais ousado nos seus comentários sobre esses temas, defendendo, por exemplo, o fim do capitalismo? Eu, particularmente, acho que sim. Mas as pessoas deveriam tomar cuidado e ser mais justas quando criticam a falta de atuação política de Pelé durante a sua vida. 

Primeiro, porque Pelé viveu o auge da sua carreira durante uma ditadura militar autoritária, não esqueçamos disso. Bastaria algum comentário um pouco mais alinhado com questões sociais e seria prontamente "acusado" de ser comunista. E ser comunista nos anos 60 não era como hoje; poderia ser motivo de perseguição, prisão, tortura e exílio. 

Segundo, porque é muito fácil alguém como eu, branco ou não morador de favela, que não tem nada a perder, cobrar que alguém coloque sua vida e sua carreira em risco por alguma causa justa. É a mesma coisa das pessoas que acham que os negros das comunidades carentes de hoje deveriam se rebelar contra todas as mazelas de que são vítimas, seja do crime organizado ou da polícia. 

Mas só quem vive dentro dessas comunidades, sendo negro, sabe as consequências de um ato de rebeldia contra poderes tão violentos. Do alto de seus confortáveis sofás, sentados em algum apartamento de um bairro de classe média, é fácil cobrarem atitude de quem vive a realidade nua e crua bem longe de suas vistas. 

Dito isto, de fato, já depois da abertura politica e da consagração, Pelé teria mais liberdade de falar livremente o que pensa, defender os pobres e criticar a desigualdade social. Não de forma inócua ou superficial como no Gol Mil, em que dedicou o feito histórico "às criancinhas", ou quando "parou uma guerra" em 1969, quando na verdade apenas contribuiu como peça de propaganda do governo da Nigéria contra os separatistas, sem que tomasse partido de nenhuma causa diretamente. 

Agora, depois de encerrada a carreira, ele poderia falar. E queria ser presidente da República. No entanto, não optou por nada disso. Preferiu lucrar sobre o mito construído ao redor de seu nome durante décadas no futebol. Cada posição tomada em favor da luta de classes dos pobres o faria perder milhões em patrocínios e eventos. Seu prestígio construído em anos seria derrubado em questão de dias, no momento em que contrariasse o establishment  que sustenta e lucra com a pobreza e a desigualdade — o mesmo que o alçou ao status de Rei. 

Por muito menos, todos vão lembrar de como o Juninho Pernambucano foi perdendo espaço na TV Globo como comentarista, na medida exata em que revelava publicamente tendências políticas de esquerda nas redes sociais... ou do zagueiro Paulo André que foi crucificado por ter liderado em 2017 o Bom Senso e dito a célebre frase que define o que acontece no Brasil a quem se engaja em algum movimento: "O país agride quem pensa e se posiciona". 

E ele só queria melhorar as condições dos jogadores de futebol...

Essa discussão é muito complexa e envolve também, é claro, a despolitização crônica e histórica da sociedade brasileira. Ninguém gosta de ser mártir ou herói de uma causa sem que as pessoas participem, elas mesmas, ativamente. 

E aqui cabe destacar a notória exceção: Sócrates conseguiu manter grande parte do seu status depois de terminar a carreira de jogador mesmo se declarando socialista, mas por conta do contexto de sua participação nas Diretas Já, movimento amplamente sancionado pela burguesia em meados dos anos 80, quando as elites quiseram o fim da ditadura militar. Foi por isso que um político adversário do status quo como Brizola pôde também ter seu destaque. O mesmo não acontecendo, por exemplo, com o jogador Reinaldo, cujo gesto de punhos cerrados na comemoração dos gols, num período anterior, marcou negativamente a sua carreira.

Todas as críticas aos jogadores descolados de suas raízes pobres hoje em dia são válidas. Mas o máximo que um jogador de futebol tem permissão de fazer, sem sofrer consequências em suas carreiras, são as inócuas e inúteis postagens "sociais" das que Richarlison faz nas suas redes sociais. Mais do que isso o cancelamento é garantido e nenhum atleta tem obrigação de cair voluntariamente no ostracismo por uma causa. Poderia, mas não é justo achar que tem obrigação. 

Se Maradona fosse brasileiro, certamente não seria socialista. Ou pelo menos teria de esconder esse fato...

"Ah, mas o Maradona defendia a revolução cubana e tinha tatuagem do Che Guevara..." De fato, essa é uma das características mais louváveis do craque argentino — que muitas vezes, de forma injusta no meu modo de ver, foi colocado acima do Rei, coisa que nem Maradona tinha coragem de fazer. 

No entanto, ambos viveram em realidades totalmente diferentes. 

Maradona e Pelé em 1979  - Por Ricardo Alfieri (El Gráfico) 

Maradona viveu o seu auge na era pós-ditadura argentina, numa sociedade bastante politizada, e depois brilhou em Nápoles, uma das mais pobres cidades italianas, onde era ídolo local. Neste contexto, sua militância política era celebrada e não afetava seu status como ídolo — isso quando, pelo contrário, não servia até para aumentá-lo. 

Já Pelé nasceu preto e pobre numa das sociedades mais desiguais e racistas do planeta, tendo furado a bolha social através de uma das poucas atividades sancionadas pelas elites aos pobres e pretos: o futebol. Alcançou o seu prestígio e depois passou quatro anos aprendendo a tirar proveito financeiro dele enquanto encerrava a carreira nos Estados Unidos, terra do mais puro capitalismo. 

O calcanhar de Aquiles do Rei

Porém, nem tudo são flores. Por fim, Pelé de fato deixou de reconhecer uma filha, que, pra piorar, veio a falecer de câncer, totalmente desamparada e sem o amor paterno que tanto buscou. Essa falha do homem Edson não tem desculpa. Não vou passar pano para uma atitude tão medíocre. E muitas vezes fiz como a maioria, confundi o homem com o atleta na crítica. 

Sandra Regina, a filha que Pelé não reconheceu. Fonte: O Tempo

Compreendo aqueles que não sabem separar as coisas e têm dificuldades em gostar do jogador por isso. No entanto, por tudo o que representou para o Brasil, e não foi pouca coisa, sendo certamente o maior embaixador do país no mundo; por ser um representante do orgulho negro em especial; por ser o maior jogador de todos os tempos, ou simplesmente por fazer o Brasil ser o primeiro e mais celebrado tricampeão mundial de futebol,  — tendo participado das três conquistas— , que Pelé mereça ser lembrado para sempre como uma das maiores personalidades que este país já produziu.  

Celebrar Pelé é, intrinsecamente, celebrar o Brasil. 





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