Monteiro Lobato contextualizado

Monteiro-Lobato
Esse texto combate anacronismos e tenta corrigir distorções de interpretação de épocas diferentes com a mentalidade do presente.
 
[lock]Anos atrás, Esmeralda Z. Parola escreveu uma história para crianças sobre uma ovelhinha chamada Roberta, muito triste porque nenhuma das outras ovelhas queria conversar nem andar com ela.
 
Uma vez ela foi perguntar à sua mãe o motivo. A ovelha mãe então disse:
— Bééé... ovelha tola! Não gostam de você porque você é diferente, esquisita. Você é a ovelha negra do pasto.
 
Roberta fica deprimida, mas encontra uma solução. Ela descobre que nas montanhas vive um rebanho de ovelhas bem pretinhas, de lã crespa e rija. Assim, dando adeus à sua família (que finge não a conhecer) ela parte sozinha. Chegando lá, é recebida como se fosse uma filha perdida há muito tempo, vivendo feliz o resto dos dias.
O livro é um sucesso de vendas, sendo inclusive recomendado pelo Ministério da Educação. Dirigentes do Movimento Negro apoiam o livro, que denuncia o preconceito das “ovelhas brancas” contra Roberta. Dona Esmeralda é agraciada com honrarias da Academia Brasileira de Letras, e se torna uma das maiores expoentes da literatura nacional.
 
Alguns anos depois, porém, começam a surgir pesadas críticas ao livro: “Este é o pior espécime de espalhafatosa bobagem racista que jamais li em toda a minha vida”, diz o crítico da editora Meu Primeiro Livro. “Repugnante!”, diz outro. Em pouco tempo, o livro é banido das escolas e até retirado das prateleiras. Dona Esmeralda, apesar de já falecida, é colocada nos banco dos réus, acusada de racismo em sua obra.
 
* * *
 
Esse pequeno texto de ficção foi adaptado do livro 101 Problemas de Filosofia, de Martin Cohen. Se há alguma lição embutida nessa história é que, muito mais do que a intenção de um autor, é a interpretação que cada sociedade dá ao livro em cada época que conta mais no seu entendimento. O livro que atravessa gerações acaba ganhando vida própria, sendo muito mais um espelho de nossa própria visão do mundo do que da época em que foi lançado.
 

Obras racistas?

Muita gente a esta altura já notou a semelhança desse caso com a acusação sofrida atualmente por Monteiro Lobato, um dos escritores mais renomados do país. O Instituto de Advocacia Racial (IARA), bem como outros movimentos negros, afirmam que as obras “As caçadas de Pedrinho” e agora também “Negrinha” contêm “elementos racistas” e entraram com representação na Procuradoria Geral da União para que as obras deixem de integrar o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que distribui livros a bibliotecas escolares do país. A alegação é que na primeira obra Lobato diz que Tia Nastácia subiu numa árvore tal como “macaca de carvão”; e na outra, a personagem principal, a negrinha, sofre violência diária da patroa, “sem [que o autor explique] que aquilo você não pode fazer”, nas palavras do diretor do IARA, Humberto Adami.
 
mono carvoeiroAcredito que há enorme exagero no patrulhamento recente dos ativistas racialistas e dos movimentos raciais em relação a obras do passado. Vejam o caso da “macaca de carvão”. Tirada do contexto, parece um insulto racista. Mas “macaco de carvão” ou “macaco mono carvoeiro” (Brachyteles arachnoides, imagem ao lado) na realidade tem os pelos claros, “loiros”. É muito mais provável que Lobato estivesse se referindo à destreza da personagem, não à sua aparência física.

Cada macaco no seu galho

Essas pessoas e organizações precisam saber interpretar o pensamento de cada época para não cair em anacronismos tolos, como defender a censura a Monteiro Lobato usando como parâmetro a noção atual de racismo do século XXI. É muito provável que Monteiro Lobato fosse, de fato, eugenista (veja eugenia aqui), um fenômeno de sua época que seduziu países inteiros como os EUA e a Alemanha no começo do século XX. No entanto, muito mais indicado do que confundir as obras hoje com a postura ideológica pessoal do autor, perfeitamente comum no seu tempo, e censurar o acesso das crianças a elas, é a contextualização de Monteiro Lobato em sua época e a leitura crítica de seu trabalho. Cada professor em sala, em vez de apontar o dedo e acusar personagens literários do passado com a cabeça de hoje, deveria mostrar a evolução do pensamento racial, com suas contradições, enganos e influências, e localizar o autor nesse debate, bem como os caminhos que o tema vem tomando atualmente.
 
Censurar nunca é positivo. Não é obstruindo o conhecimento das obras em bibliotecas que vamos formar uma sociedade mais ou menos racista e sim entendendo a nossa história, nossa mentalidade, nossos erros e acertos, para podermos compreender nossa situação e construir uma sociedade menos desigual daqui por diante. Afinal, como bem mostrou o conto narrado acima, o que hoje é o pensamento dominante, amanhã pode ser condenado, em vez de compreendido. O MEC já entendeu isso. Espero que o Supremo Tribunal Federal também, no seu julgamento do caso.[/lock]
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