A ciência brasileira a serviço das desigualdades

Copacabana e seus contrastes, símbolo da severa desigualdade social no Brasil

Eu demorei a conhecer o trabalho do sociólogo Jessé Souza. Foi somente em julho de 2013 que eu me deparei com uma publicação sua: A Ralé Brasileira. Foi amor à primeira vista, e de lá pra cá eu venho acompanhando mais de perto a produção deste acadêmico crítico e mordaz das injustiças sociais brasileiras*. Por isso mesmo, seu mais novo trabalho, intitulado A Tolice da Inteligência Brasileira, servirá de base para comentarmos agora e em outras postagens como a intelectualidade brasileira, em vez de criticar o senso comum que oculta a razão da imensa desigualdade social do país, ajuda a reforçá-la, com teorias falsas que demonstram a síndrome de vira-latas de nossa elite pensante.

Segundo Jessé Souza, as ideias do senso comum não brotam do nada; elas são pensadas por grandes autores até ganharem as ruas, as universidades, as conversas de botequim e o bate-papo na fila do banco. Elas ocultam e distorcem a realidade, selecionando o que é legítimo e o que não é legítimo pensar. Isso porque quem alcançou a riqueza e o status, bens escassos em qualquer sociedade, precisa defender a ideia de que tem direito a esses bens. A riqueza — e consequentemente a pobreza — precisa ser legitimada, aceita como um dado natural.

Dessa forma, a riqueza e a boa posição social não aparecem como privilégios, são ocultados no senso comum através da falsa ideia da meritocracia, que camufla os meios que fizeram tal pessoa alcançar o sucesso. É o que o autor chama no livro de “violência simbólica”, que atua no âmbito da ideologia, em substituição à violência física, agora o último recurso.

É por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos. (p.10)

A tese do autor, que perpassa toda obra, é que tamanha violência simbólica só é possível graças ao empenho de setores da intelectualidade brasileira, que trabalham a serviço da manutenção do privilégio dos poderosos. Em vez de usar a ciência de forma imparcial e crítica, usam para legitimar a desigualdade social.

Os poucos que controlam tudo precisam desses intelectuais e especialistas do mesmo modo que os coronéis de antigamente necessitavam de seu pequeno exército de cangaceiros. Eles são o seu “exército de violência simbólica” assim como os coronéis do passado possuíam o seu “exército de violência física”(p.11)

Jessé pretende desvendar as chamadas ideias-força produzidas e disseminadas por intelectuais brasileiros em conexão com os interesses dos poderosos, que se institucionalizam como verdades naturais. Vamos esmiuçar aqui algumas dessas ideias, e seus autores proponentes.


A ciência como legitimadora dos privilégios

“Não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem”

Segundo Jessé, nos últimos 200 anos as interpretações e as explicações sobre o mundo e como devemos agir nele foram obras de filósofos, sociólogos e historiadores, em substituição aos clérigos. Todas as ideias dominantes que circulam na imprensa, nas salas de aula, nas discussões e nas conversas de botequim não passam de versões mais simplificadas das ideias produzidas pelos grandes pensadores.

O racismo velado do culturalismo científico

A tese do culturalismo científico cria a dicotomia tão naturalizada entre sociedades ditas avançadas e atrasadas, no âmbito tanto cognitivo quanto moral, quer dizer, as sociedades avançadas — e por tabela os seus cidadãos — são percebidos idealmente como mais racionais (dado cognitivo) e superiores (dado moral). Como consequência, nós, dos países “atrasados”, somos vistos negativamente como “afetivos”, “emocionais” (cordiais, no sentido de coração) e portanto mais propensos à corrupção.

Essa divisão é racista pois vê o europeu e o branco de modo geral como dono da civilização perfeita, enquanto nós, os mestiços da periferia, sofremos com nossas imperfeições que refletem na política e na economia. O que antes era legitimado pela suposta superioridade racial agora é explicado pelo “estoque cultural” superior das sociedades do Atlântico Norte.

Jessé aponta no Brasil os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque como autores que reproduzem com fidelidade essa corrente culturalista. Com o aporte de vastas quantias de dinheiro norte-americano em apoio para pesquisa, legitimou-se o culturalismo em crítica ao “racismo científico”. Mas no fundo, essas pesquisas dirigidas levaram ao predomínio da ideia de uma hierarquia mundial onde os Estados Unidos estariam no topo como exemplo da máxima perfeição.

Esse esquema foi usado até pelos pensadores dos países periféricos, convencidos (ou financiados) de que os Estados Unidos são de fato o El Dorado na Terra.


Gilberto Freyre e o culturalismo à brasileira.


A gênese do culturalismo brasileiro se deu nos anos 30 do século XX com Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Nessa obra, Freyre fundou a forma dominante como o Brasil contemporâneo percebe a si mesmo. Ele inverte a fórmula racista científica para tornar positiva o que até então era visto como nosso principal problema: a miscigenação racial.


Sérgio Buarque e a tese do patrimonialismo

Freyre fundou a concepção dominante de como o brasileiro se percebe no senso comum, mas foi Sérgio Buarque de Holanda que deu, três anos depois de Freyre, a chancela de ciência ao senso comum em Raízes do Brasil. A ideia-força mais poderosa que Buarque nos legou foi a da relação entre mercado, sociedade e Estado. Nessa tese, hoje claramente em voga, o Estado é tido como fraco, incompetente e propício a todo tipo de desvios, enquanto o mercado é o reino da virtude e da racionalidade.

O que Buarque acrescenta em relação a Freyre é a ideia do personalismo —”a emotividade como um dado psicossocial que guia as relações interpessoais de favor/proteção” — institucionalizado, ou seja, patrimonial. O patrimonialismo, por sua vez, é o nível institucional do personalismo, o homem cordial de Buarque, emotivo, pré-racional, pré-moderno, que leva essas características para o Estado. No Estado o homem cordial divide tudo com os amigos, pune com rigor os inimigos, não existe imparcialidade.

O dado curioso reparado por Jessé é que o homem cordial de Buarque está presente em todas as esferas da vida, mas as atenções de Buarque se concentram apenas na sua atuação corrupta no Estado. O mercado, apesar de ser operado pelo mesmo tipo de homem, é visto, por outro lado, como o local da racionalidade, da virtude e da impessoalidade…

Uma jogada sensacional dessa teoria é a associação implícita, nunca demonstrada, entre mercado e sociedade. A teoria nos convida sutilmente a embarcar na crítica ao “Estado corrupto”, e assim nos sentirmos tão virtuosos e imaculados quanto o próprio mercado… É assim que amplos setores da sociedade acabam conquistados pela ideia da mercantilização da vida como um todo, embora as camadas populares não tenham efetivamente nada a ganhar com isso. Na verdade acabam por defender uma tese que de fato é a favor apenas de uma pequena camada da sociedade (a dos ricos), que assim universalizam seus interesses particulares como se fossem de todos nós, e ainda demonizam o Estado que tem como uma de suas principais funções a de equilibrar as desigualdades com ações de redistribuição da riqueza, por exemplo.

Enquanto se perde tempo nessa falsa dicotomia entre mercado virtuoso e Estado sempre corrupto, deixa-se de prestar atenção no verdadeiro drama brasileiro: a desigualdade social, que é produto histórico muito mais de um mercado mundial que gera tanto riqueza quanto miséria, aumentando o fosso de desigualdade, do que da suposta corrupção unicamente concentrada no Estado.


* Você pode acompanhar diversas postagens baseadas neste livro por aqui, como

  1. Conflitos de classes nos hospitais públicos brasileiros;
  2. O economicismo e suas consequências para a desigualdade social;
  3. Os mitos da meritocracia e da brasilidade a serviço dos privilégios no Brasil
  4. Como se perpetuam os mitos da sociedade brasileira








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