Pio IX, o caso Mortara e As Cortes de Justiça brasileiras


Gilmar Mendes e os judeus

Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça

(Eduardo Juan Couture, jurista uruguaio)

O Holocausto representou o ápice da perseguição aos judeus na Europa, mas a verdade é que eles eram vítimas de ódio e violência há várias gerações anteriores. Especialmente na Idade Média, uma época de plena superstição católica.

Pelo menos, naquela época, os papas da Igreja católica não corroboravam com as fantasias do populacho, que imputavam aos judeus as práticas mais abomináveis, como o assassinato ritual de crianças católicas, entre outras ilusões que muitas vezes terminavam em violência.

Católicos associam modernidade ao judaísmo

A mudança de postura dos papas aconteceu com o advento da modernidade. O mundo passava por grandes transformações a partir do século XVIII, as pessoas eram mais educadas, tinham mais liberdade, a ciência explicava os fenômenos naturais e acabava com a maioria das superstições… Pelo menos na maioria das cidades da Europa. Nos Estados Papais, a modernidade foi amaldiçoada, mal vista e combatida. E os judeus foram associados ao advento das mudanças que ameaçavam a posição de dominância da Igreja católica.

A conclusão disso é que em diversos lugares da Europa os judeus estavam saindo dos guetos para poderem praticar suas atividades com maior liberdade, se misturando com a multidão e ganhando alguns direitos. Menos nos Estados Papais, uma série de cidades no centro da Itália onde o papa governava como qualquer rei e não apenas como liderança religiosa. Nestes lugares, a opressão sobre os judeus aumentou consideravelmente.

Pio IX resiste em aceitar o novo mundo que surgia

Um caso ilustra bem o descompasso da Igreja com relação à realidade do mundo àquele momento. Em 1848, o povo da Europa irrompeu em diversas manifestações que abalaram os governos da região, inclusive dos Estados Papais. Nestes lugares, o povo já não se submetia incondicionalmente ao poder do Vaticano, e até o tratamento desumano dispensado aos judeus pelo papa passou a ser contestado.

O papa de então era Pio IX que, acuado, solicitou a ajuda dos soldados de Viena para aplacar a fúria da multidão. Dez anos depois, porém, em 1858, a ação obscura de uma mera adolescente analfabeta iria desencadear eventos que destruiriam os Estados papais.

Numa noite de junho de 1858, a polícia chegou à casa de Momolo e Marianna Mortara, um casal de judeus que viviam num gueto em Bolonha há uma década. A polícia estava à procura de seu filho, Edgardo Mortara, de seis anos. Naquela época, os líderes da Igreja defendiam a ideia de que qualquer um que fosse batizado por quem quer que fosse, mesmo contra a vontade, automaticamente se tornava católico e devia ser capturado para ser educado pela Casa dos Catecúmenos em Roma. Havia rumores de que o pequeno Edgardo havia sido “batizado” pela criada católica da família, chamada Anna Morisi alguns meses antes. Levada a um inquisidor, ela afirmou que quando Edgardo era um bebê, ficara doente. Temendo pela sua alma, ela borrifara um pouco de água do balde da cozinha sobre a cabeça do menino quando ninguém estava vendo, e pronunciou a simples fórmula batismal: “Eu lhe batizo, em nome do Pai, do Filho e do espírito Santo”. A partir da confirmação da garota, a polícia foi resgatar o filho “católico” dos Mortara do convívio de sua família judia [1].

Anteriormente, esse costume de batismo e sequestro revoltava os judeus, mas não contava com nenhuma solidariedade do povo. No entanto, o mundo estava mudando e este ato de violência e superstição causou grande comoção entre os italianos também naquela ocasião. O movimento pela unificação da Itália, que ameaçava os Estados Papais, estava ganhando corpo no país, e a atitude do papa com relação à família Mortara mostrou ao mundo o quão anacrônica a Igreja Católica se mostrava naquele meados de século XIX.

Jornais da Europa e dos Estados Unidos pressionaram o Vaticano pela soltura e devolução do menino. A repercussão do caso atravessou fronteiras e desafiou o papa como nunca antes. Os próprios clérigos mais próximos de Pio IX tentaram persuadi-lo a mudar de postura. O duque de Garamond, embaixador francês, deu a noção do dilema vivido por Pio IX:

“O papa ficou profundamente comovido[…] Mais importante, porém, do que essa emoção, era para o Santo Padre seu inabalável compromisso de se aferrar a uma decisão ditada por sua consciência”

Pio IX sabia que sua intransigência era impopular mundo afora, mas permaneceu com suas convicções baseadas no cânone católico. Para David Kertzer [2],

A posição do papa custou caro à família Mortara, pois Edgardo nunca voltou para os pais. Foi criado num seminário em Roma e mais tarde fez-se padre. Mas o custo para o papa e a Igreja também foi alto. […] A tomada da criança reforçou a crença comum na Itália e na Europa em geral, de que o domínio pontifício era o resquício de uma era anterior que não tinha nenhum lugar na segunda metade do século XIX. Um ano depois de Edgardo ter sido tomado dos pais, as forças papais foram expulsas de Bolonha. Os defensores da unificação italiana — com o apoio dos franceses — atravessaram grande parte dos Estados papais. […] Em 1861, tudo que restava do reino do papa era Roma e a área imediatamente circunvizinha.

Juízes brasileiros também se negam a ver a realidade

Vemos que a inabilidade de Pio IX de atender os clamores das mudanças do seu tempo, bem como a incapacidade de escutar a voz das manifestações populares lhe custou muito caro. Eu vejo um paralelo dessa postura nos juízes das altas cortes federais brasileiras, como ficou claro no recente julgamento da chapa Dilma-Temer.

No momento em que amplas camadas dos diversos setores da população brasileira clamavam por uma solução para a crise que castiga o país através da esperada condenação da chapa Dilma-Temer, proporcionando assim a possibilidade de novas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral fez ouvidos de mercador. Apegando-se a meras questões técnicas — entre outras coisas, a dispensa de provas produzidas depois da petição da cassação — absolveram um notório corrupto no poder.

Por trás das alegações pedantes dos ministros, desde sempre esteve a ideia de que o Tribunal deve estar acima de quaisquer clamores populares. Imaginam-se homens e mulheres imunes às questões do seu tempo, talvez no Olimpo da Justiça, aplicando a lei “objetivamente” sem se deixar influenciar pelo mundo ao redor.

Não cabe a mim discutir essa querela conceitual por falta de capacidade, pois não é a minha área. Por isso, para corroborar a minha alegação de que o Tribunal faltou com o compromisso para com a nação — assim como Pio IX e seu apego incondicional às leis do cânone católico anacronicamente antissemita —, por não conectar a lei com o mundo em que vivem, eu trago afirmações de um dos próprios juízes do caso no seu voto. Segundo Luiz Fux,

  • Seus colegas deveriam ter ficado atentos neste momento em que a sociedade clama por limpeza na política;
  • Também chamou a postura de alguns juízes, que ignoram a realidade dos fatos na política para tentar dar ares de imparcialidade no julgamento, de “premissa ortodoxa ultrapassada”;
  • Além disso, afirmou que, como magistrado, não se sente confortável de julgar a situação atual do Brasil levando em conta apenas filigranas da Justiça, ou seja, exatamente como Pio IX, desdenhar da situação e dos clamores da população para se apegar a detalhes técnicos da letra fria da lei (seja ela leiga ou religiosa).

Ninguém está dizendo que, para se atender o clamor do povo pela condenação de Temer e a consequente eleição direta, dever-se-ia passar por cima da Constituição ou da lei. É tudo questão de interpretação. Se os juízes tivessem interpretado que as novas acusações contra a chapa PT-PMDB surgidas depois da ação pudessem ser levadas em conta, o resultado poderia ser diferente e agora estaríamos discutindo novas eleições.

Pio IX carregará para sempre a mácula de ter sido o responsável pela desagregação dos Estados Pontifícios na região central da Itália, por pura teimosia e cegueira. Gilmar Mendes e seus colegas de toga colaboram com a sensação de total anomia que tomou conta do Brasil, o sentimento de que não se pode contar com as instituições republicanas, porque seus agentes públicos vivem num outro mundo, alheios ao problemas concretos da plebe, perderam completamente o senso do dever.

Mas, pelo menos, o líder da Igreja Católica pensava estar seguindo as determinações de Cristo. Os nossos juízes, por outro lado, querem apenas defender o status quo que lhes garante uma vida de bonança e de luxo no meio da pobreza geral, condição que faria o próprio papa parecer um irmão franciscano das ordens mendicantes.

________________________

1 – KERTZER, David I. O Vaticano e os Judeus. Ed. Rocco: Rio de janeiro, 2001. pp. 150-159

2 – Idem





Comentários

  1. Jeremias Pereira15/06/2017, 13:32

    Acho que a analogia é perfeita. Resta saber o que será do Brasil daqui por diante, nessa crise que não acaba.

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    1. Olá Jeremias,
      Realmente, o destino do Brasil passa pelo nosso poder de mobilização. Quanto mais o brasileiro se engajar nos problemas do país, mais os políticos se sentirão pressionados a tomar as atitudes importantes para a mudança.

      Grande abraço.

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