Religião também é alvo de crítica nas campeãs do Carnaval carioca


O momento político conturbado por que passa o Brasil ajudou a resgatar a verve crítica de uma manifestação popular naturalmente "subversiva", o Carnaval. Pelo menos nos desfiles das escolas de samba do Rio, os protestos contra a atual situação política dominaram os assuntos.

Muito contribuiu para isso a escolha de algumas escolas de samba do Grupo Especial, que levaram para a Sapucaí temas com crítica social. Os meios de comunicação e os foliões perceberam as nítidas referências à corrupção política, portanto nem vamos falar aqui tanto delas, mas do que passou despercebido, intencionalmente ou não: as alusões negativas à religião nos sambas-enredo da campeã e da vice do Carnaval: Beija-Flor e Paraíso do Tuiuti.

Não só a política está na raiz de nossa atual situação de desigualdade social, descaso com os mais pobres e violência. É difícil para muita gente reconhecer que a religião cristã contraditoriamente serviu aos ricos e dominantes, mesmo não sendo nenhuma surpresa para quem acompanha a história do cristianismo. A Igreja serve aos senhores e sempre tem servido de diversas formas, na nossa época colonial especialmente. Dentre as principais contribuições, para justificar o fato de existirem no Brasil escravos e senhores. Desde o conceito das Cruzadas católicas de "guerra justa" — embora essa ideia tenha vindo de um contexto bem específico de expulsão dos mouros da Península Ibérica e tenha sido transportada de forma imprecisa para a caça de negros na África mais tarde — até a justificativa bíblica de que os negros eram descendentes de Cam, amaldiçoados por Noé.



A campeã do carnaval carioca de 2018, a Beija-Flor, em seu samba-enredo, só faz alguma menção realmente política quando clama logo nos primeiros versos "Ó Pátria-Amada, por onde andarás". Depois, quase todos os versos fazem alusão explícita à questão religiosa da opressão:

Do pai que renegou a criação
Refém da intolerância dessa gente
Retalhos do meu próprio criador
Julgado pela força da ambição
Sigo carregando a minha cruz
A procura de uma luz, a salvação!


Estenda a mão meu senhor
Pois não entendo tua fé
Se ofereces com amor
Me alimento de axé
Me chamas tanto de irmão
E me abandonas ao léu
Troca um pedaço de pão
Por um pedaço de céu


Isso sem falar do trecho que diz que "Ganância veste terno e gravata", pois tanto os políticos e empresários usam essa vestimenta quanto os pastores. 

Já a Paraíso do Tuiuti questiona logo no título do samba "Meu Deus, meus Deus, está extinta a escravidão?". Assim como a Beija-Flor fala do pedaço de pão em troca da salvação, a Tuiuti fala da necessidade do escravizado de se contentar com o modesto prato de comida dado pelo senhor cristão:

Senhor eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar escravidão e um prato de feijão com arroz


É natural que todo o foco da crítica destes desfiles tenha recaído sobre a questão política. É muito mais aceito socialmente falar mal de políticos do que de religião. Professores, políticos, jornalistas, e também carnavalescos evitam o mal estar do embate com setores que dominam, literalmente, grande parte da opinião pública e que podem assim destruir reputações. Mas se por um lado devemos lamentar essa condição hipócrita de intocabilidade de instituições religiosas que fizeram e fazem, não obstante seus méritos em outras questões, grande mal à sociedade, podemos pelo menos enaltecer a forma inteligente com que ambas as escolas trouxeram o assunto, mesmo que embrulhado em crítica política

O Carnaval volta assim a ter um papel importante de crítica social, embora alguns camaradas ortodoxos e anacrônicos da ala esquerda do espectro político zombem desse tipo de "luta". O título e o vice-campeonato do carnaval carioca estão em boas mãos.




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