O cinismo de Sérgio Moro

O costume de juízes participarem das investigações é um ato isolado de Moro ou uma prática normal na justiça, como ele disse? 

Não sei se o cinismo, que os gregos antigos definiam como "a busca de uma vida simples e natural através de um completo desprezo por comodidades, riquezas, apegos, convenções sociais e pudores", mas que o mundo moderno traduziu como "atitude ou caráter de pessoa que revela descaso pelas convenções sociais e pela moral vigente", é inata ou pode ser adquirida. O fato é que Sérgio Moro o tem de sobra.

Ontem assisti pedaços de seu depoimento na Comissão de Constituição e Justiça — não todo, pois muitas das questões o inquirido recusou-se a responder objetivamente, sendo então repetidas várias vezes, e várias vezes ele teve respostas dissimuladas. Mas algumas de suas afirmações chamaram atenção.

Umas delas foi quando disse jamais ter vazado escutas ilegais durante a Lava Jato. Afirmou que o vazamento da conversa entre Lula e Dilma em 2016 tinha interesse público, e por isso resolveu soltar os áudios ilegais. Ilegais sim, porque o ministro do Supremo Teori Zavascki, que pouco depois sofreu um acidente fatal de avião até hoje mal explicado, repreendeu o então juiz de primeira instância pelo ato extrajurídico, tendo em vista o foro privilegiado da presidente Dilma na ocasião. De tanto que reconheceu a ilegalidade, Sérgio Moro cometeu um de seus primeiros atos públicos de cinismo, pedindo desculpas, desculpas inúteis e infames, tendo em vista o estrago já feito premeditadamente.

Também ontem, foi perguntado por que — se tem, realmente, convicção de que as suas conversas agora reveladas foram obtidas de maneira criminosa — ainda não entrou na Justiça alegando injúria, calúnia ou difamação. A pérola do cinismo do dia veio na resposta "porque eu sou a favor da liberdade de imprensa" (!!). Isso ao mesmo tempo em que a Polícia Federal, sob seu comando direto, faz ameaças de coação, segundo alguns deputados, solicitando ao Coaf a abertura de dados financeiros do jornalista Gleen Greenwald, autor das denúncias contra Sérgio Moro.

Pra fechar, tentou dizer que era perfeitamente normal, no meio jurídico, juízes terem esse tipo de conversa com os advogados e procuradores: "olha, melhora essa prova aí, senão eu não tenho como condenar" ou "acho que não dá pra absolver ainda, convoca aquela fulana pra depor", conforme alguns exemplos baseados nas conversas de Moro com o procurador Deltan Dallagnol que o ex-juiz acha perfeitamente cabíveis.

Como bem disse o filósofo Paulo Ghiraldelli no seu canal do You Tube, se a Justiça brasileira realmente funciona assim, é pra parar tudo, começar do zero, porque tá tudo errado. Se o Moro e apenas o Moro age assim, então é caso de incompetência colossal de quem não tem a menor ideia de como funciona a justiça, e aí tem que exilá-lo, prendê-lo, cassá-lo, puni-lo de alguma forma, porque além de péssimo juiz, cometeu crimes contra os direitos humanos.

Mas o cinismo maior do ex-juiz da Lava Jato e atual ministro da Justiça vem sobre as explicações da autenticidade dos áudios. Dizendo-se vítima de hackers sem nenhuma prova, uma hora ele alega falta de memória para não confirmar o que disse; outra hora diz que as conversas podem ter sido adulteradas; e por fim, afirma que caso tenha realmente falado o que não lembra ou o que foi adulterado, até agora as conversas não mostram nenhuma ilegalidade. (!!)

As últimas semanas não têm sido fáceis para aquele que até recentemente era o herói dos tolos, provável candidato à presidência da República ou a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, mas que, ao que tudo indica, terminará seus dias como uma figura medíocre, como um Eduardo Cunha da vida,  um ex-homem público folclórico por sua notória incapacidade de se expressar bem e que alcançou o topo do estrelato político mas que caiu por seus próprios atos deploráveis.





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