Quarentena: por que as pessoas lidam tão mal com o tempo livre


Recentemente, no programa Papo de Segunda, no canal GNT, o rapper Emicida levantou uma questão bastante controversa a respeito do que fazer nesta prolongada quarentena, criticando a suposta obrigação de produzir até no descanso, citando o chamado ócio criativo. Na chamada do Facebook do canal para o vídeo do comentário do artista, podia-se ler: "Emicida se manifesta contra a ideia do ócio criativo na quarentena, que pressiona [sic] as pessoas a produzirem e aprenderem mais".

"Ócio criativo" se tornou um jargão muito popular no mundo, mas poucas pessoas aplicam o termo de forma precisa, ou realmente pararam para ler o autor desta teoria, Domenico de Masi, para entender realmente o seu conceito. Não sei se foi o caso de Emicida. Intuitivamente ele até defende corretamente o ócio por si mesmo no seu comentário, mas, criticando o fato da "criatividade" ser uma suposta obrigação, se confunde no entendimento do conceito. 


De Masi não foi o primeiro a defender o ócio. Antes, outros autores propuseram o descanso como direito dos trabalhadores, já que historicamente sempre foi das elites, que tiravam seu sustento do trabalho alheio, dos escravos, dos camponeses servis ou dos próprios proletários nas fábricas, ficando com tempo livre para fazer política, refletir, descansar, aproveitar a vida, ou o que mais fosse prazeroso. Mas de Masi foi quem melhor sistematizou o descanso relacionado com o mundo moderno das máquinas.

Ócio criativo não é nem preguiça nem "obrigação" de produzir


O autor italiano argumenta no seu livro O Futuro do Trabalho¹ que, modernamente, as máquinas já fazem quase todo o trabalho não-criativo humano, sendo capazes de livrar o trabalhador do trabalho enfadonho, repetitivo e cansativo, liberando-o para o tempo livre — o ócio necessário para que a criatividade humana possa florescer de forma natural, não obrigatória. 

Só não somos capazes de por esse novo sistema em prática por uma espécie de conservadorismo apegado às tradições de um mundo industrial que está, segundo o autor, cada vez mais ultrapassado, mas que ainda dita nossos ritmos em todas as esferas da vida, nos horários regulares no trabalho, na escola, na igreja e até comportamento.



Nesse mundo industrial, o ócio é visto de forma negativa, ligada à vadiagem, à preguiça, à delinquência, à culpa e a vergonha. "Trabalhadores remediados"², no conceito usado pelo sociólogo Jessé Souza, se orgulham de "dar duro" no trabalho, pois isso ainda os distingue das classes inferiores, onde o desemprego é uma chaga e um rótulo pejorativo. 

Trabalho e lazer no mundo pós-industrial


Num mundo pós-moderno e ideal, De Masi propõe, como compensação ao desemprego provocado pelas máquinas, a redução gradativa da jornada de trabalho até que estejamos prontos a delegar definitivamente todo o trabalho não-criativo às máquinas e robôs, para que possamos, assim, nos dedicar livremente ao trabalho intelectual, criativo, prazeroso que advém do ócio. Ou seja, do ócio criativo, onde não existam fronteiras visíveis entre o dever e o lazer, entre o trabalho e o descanso. 

Não vamos nos aprofundar aqui na discussão teórica sobre se a maior liberalização do trabalho em função das máquinas no mundo de hoje tem gerado mais tempo livre criativo ou desemprego e precarização do trabalho via informalidade. Mas, como fez Emicida, vamos trazer a questão do ócio para este momento específico de quarentena, em que muitos trabalhadores estão tendo a oportunidade de lidar com uma inatividade compulsória, por assim dizer, experimentando uma espécie de laboratório para o ócio. 

Como as pessoas têm lidado com a inatividade no trabalho


No Brasil e no mundo, a quarentena forçada tem trazido inquietação em alguns lugares, depressão e ansiedade elevadas em outros, como na Inglaterra, por exemplo. Parece que, sem poder trabalhar, a vida de muitas pessoas não faz sentido. O trabalho, ou melhor, a função exercida no trabalho remunerado, e não o trabalho doméstico, caseiro, como o ato de lavar o banheiro, trocar a fralda de um filho ou cozinhar o almoço define como as pessoas se veem e querem ser vistas no mundo. No seu livro Lavorare Positivo³, Riccardo e Maria Ludovica Varvelli afirmam:



Ainda hoje, entre os fundidores das aciarias, entre os que cuidam de sanitários em estações do metrô, entre os mineradores, entre os mais obscuros revisores de provas, entre os bancários obrigados a contas eternas, em suma, entre aqueles que executam uma tarefa que pode ser considerada triste, obscura, humilde e humilhante, há mulheres e homens que se entregam contentes ao trabalho, sentindo que proveem, com a sua contribuição, não só a si mesmos mas também à sociedade em que vivem. 

Quando são impedidas, como agora, de exercer as atividades que lhes dão sentido à vida, as pessoas perdem o rumo. Não são capazes de praticar nenhuma atividade engrandecedora de si ou para si; não são capazes de refletir, de pensar, de relaxar. Durante tanto tempo essas atividades foram tão mal vistas que elas simplesmente perderam o prazer de exercê-las.

O próprio Emicida, que diz "odiar essa ideia do ócio criativo" na sua fala contraditória, ao mesmo tempo que intuitivamente defende o próprio ócio, mostra como as pessoas estão mal preparadas para o tempo livre. Se algumas pessoas acham que a falta de uma tarefa obrigatória é um fardo que as deixam entediadas, ansiosas ou depressivas, outros, como Emicida, que parecem não ter entendido o conceito de ócio/trabalho criativo, acreditam que a oportunidade advinda do tempo livre é mais uma imposição e não uma chance de reservarem para si a parte criativa, flexível e inteligente da vida.



Nossa falta de atividade laboral provocada pela quarentena nos dá uma ideia de como as pessoas reagiriam, hoje, se tivessem muito mais tempo livre do que têm habitualmente. Podemos concluir que a maioria delas não está preparada, ainda, para o mundo pós-industrial proposto por de Masi. O tempo livre tem se tornado mais um transtorno a ser preenchido com qualquer atividade extra do que um momento de paz, lazer, reflexão e criatividade.

Mas isso também foi previsto pelo autor. É o que ele chama de cultural gap: nossa resistência a inovações, mesmo quando são claramente vantajosas. Aconteceu em todas as transições históricas, como na passagem do mundo rural para o industrial, e agora do mundo industrial para o pós-industrial.

E como superar essa relutância em mudar? Da onde deve vir a mudança?

Segundo Domenico de Masi, falando com relação ao mundo industrial decadente, é nos momentos de crise na história como essa que a humanidade conseguiu se superar, propor novos modelos e modos de vida. Hoje essa crise é potencializada pelo desafio do coronavírus, onde, por outro lado, temos a oportunidade de experimentar um mundo com menos trabalho e mais tempo livre para nós mesmos, mesmo que por tempo limitado. É a completa conversão da mentalidade urbano-industrial para a pós-industrial, onde os operários, empregados de modo geral, executivos, profissionais, dirigentes, proprietários e consumidores devem "introjetar um modo novo de considerar as categorias de tempo, espaço, lucro, concorrência, solidariedade, ecossistema, qualidade de trabalho e de vida".

Quem sabe assim o próprio Emicida seja capaz de compreender que quando ele está "puxando um ronco, cortando a unha do pé assistindo a um programa de culinária", sem querer, sem saber, ele está exercendo o privilégio ao ócio criativo que ele pensa ser uma obrigação

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1 De Masi, Domenico. O futuro do trabalho. Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
2 Aqueles trabalhadores que, saídos de áreas pobres, pretendem se distinguir com seu trabalho.
3 R. e M.L. Varvelli, Lavorare Positivo. Il Manager tra ragione ed emozione. Il-Sole 24 Ore Libri, Milão, 1997, p. 41-42









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