Quanto vale a vida no Brasil

Quanto vale a vida de um escravo? Um escravo é um não-sujeito, um trabalhador compulsório, uma ferramenta que funciona em favor de terceiros, que pode ser trocada, descartada por outra ferramenta

Até maio de 1888, uma pequena elite de colonizadores se utilizou dessas "ferramentas" para prosperar no Brasil, um mero objeto descartável com uma média de duração de 7 anos, que podia ser substituída no mercado por outra, indefinidamente. 

Até que, aos poucos, o sistema econômico mundial foi modificando, a escravidão já não era tão vantajosa assim, de modo que o trabalho assalariado se tornou a forma de trabalho predominante, e hoje, teoricamente, substituiu o trabalho compulsório. 

O Brasil teve a sua abolição tardia da escravidão, de maneira que ainda não é possível vencer a força de mais de 300 anos de trabalho escravo na mentalidade das elites neste país, cujas raízes profundas estão nas fundações da nossa sociedade até hoje.

A segunda grande iniquidade contra os ex-escravos — depois da própria escravidão —, agora ajuntados à massa de trabalhadores pobres, cometida pela suposta nova elite pós-escravista brasileira foi ter patrocinado a entrada de vários imigrantes europeus no país. A incipiente indústria nacional poderia muito bem acolher os trabalhadores nacionais, mas, para além das preocupações com a produção de riqueza do Brasil, as nossas classes dominantes estavam mais angustiadas com a nossa aparência: sua síndrome de vira-latas os impulsionou a "embranquecer" nossa população, já que a Europa branca era o sinônimo de gente civilizada — não obstante os já inúmeros episódios de barbaridades e atrocidades cometidas pelos ditos "civilizados" ao redor do mundo no seu processo de colonização. 

Sem trabalho, uma massa de pessoas ficou sem uma fonte de renda, e sem fonte de renda veio a velha e conhecida pobreza, com a pobreza aumentou a desigualdade social a olhos vistos, e com essa desigualdade a violência policial virou a regra de controle e prevenção de insatisfações. 

O que a violência traz? Mortes, e o Brasil quebra todos os recordes de mortes violentas em todo o mundo. São de novo os pobres e os descendentes de escravos que sofrem diretamente com ela. Todo ano uma média de 60 mil pessoas morrem de forma violenta, grande parte desses episódios causada por confrontos policiais.

Algumas dessas pessoas até poderiam ser salvas, mas como pobres que são em sua esmagadora maioria, vão parar em hospitais públicos que desde a implementação do SUS em 1989, nunca receberam a devida dedicação por parte do Estado brasileiro, sendo sucateados a cada ano por falta de interesse das nossas classes dominantes em prover Saúde de qualidade para as camadas mais vulneráveis da população. 

E agora temos uma pandemia mundial. Desde o ano passado, o governo teve todas as condições de agir para prevenir uma catástrofe genocida que campeia por todos os cantos desse país. A escalada geométrica impressionante teria causado um escândalo em qualquer país europeu dito "civilizado", que nossas elites adoram imitar. Mas durante esse quase um ano de covid-19, somente vimos deboche, descaso, menosprezo pelas milhares de mortes. 

Depois de um total de 340 mil mortes, ainda se preocupam mais com a abertura das escolas, das igrejas e do comércio, do que conter a chacina. A economia não pode parar. Tal como os antigos escravos da lavoura, a mão-de-obra pode ser substituída. Somos 200 milhões de pessoas, não tem problema. Pouco importa que uma vítima de uma doença já totalmente remediável desde meados do ano passado seja o filho querido de alguém, o amigo, um estudante, parente próximo de uma família brasileira, ou simplesmente um... ser humano. 

Somente quando o mundo fechou as portas para o Brasil é que o empresariado nacional resolveu tomar providências. E o que eles fizeram? Fizeram passar uma lei do Congresso permitindo que eles mesmos possam comprar as suas vacinas! Danem-se as milhares de pessoas na fila, pacientemente esperando a sua vez de tomar uma dose de imunizante já com meses e meses de atraso. Nossa elite é especial demais para se comportar como qualquer cidadão. 

A mentalidade escravocrata dos descendentes dos senhores de terra que hoje, por herança, formam a nossa elite determina que, para eles, o povo brasileiro é um estoque de ferramentas braçais ao seu bel prazer, das quais podem dispor, usar e descartar. Esse é o valor que a vida de um trabalhador brasileiro tem para esta gente.

É preciso lembrar a essa pequena bolha de privilegiados ricos, porém ignorantes e iletrados, uma das lições básicas da história. No final do século XVIII a nobreza francesa também costumava tripudiar do seu povo, nadando no luxo e na ostentação enquanto milhares passavam fome e sofriam com doenças e violência. Talvez esses privilegiados de então pensassem que esta era a ordem eterna das coisas, que tudo seria sempre do mesmo jeito e que não importasse o quanto eles apertassem a corda, o povo ia aguentar calado. 

Não aguentou. 

O destino das Marias Antonietas é bem conhecido. Talvez as nossas elites brasileiras também acreditem que tudo sempre vai ser assim no Brasil, que eles podem abusar da nossa tristeza e usufruir dos seus privilégios indevidos para sempre. 

Ou talvez eles apenas estejam pagando pra ver até onde vai o limite da nossa paciência...





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