Como e por que a esquerda deve reivindicar Jesus Cristo


Camarada Jesus. Fonte: o Cafezinho

Mais um ano de eleições vai se concluindo, trazendo consigo, como sempre, a temporada de debates com base em pautas morais. A louvação das próprias virtudes no campo conservador (defesa da família, de deus e da pátria, três grandes abstrações sem a menor profundidade real) é espelhada pelos ataques ao campo progressista, acusado de querer destruir a família tradicional, de ser contra os valores da vida ao defender o aborto — não obstante a defesa dos direitos humanos para já-nascidos não constar do interesse desses mesmos conservadores. 

É deslocando o debate do seu campo natural, a política, para o terreno religioso que os conservadores vem ganhando corações e mentes ao longo dos últimos anos. Não é coincidência que, por exemplo, o ultimo grande baluarte da esquerda eleito para o governo do Estado do Rio tenha sido Leonel de Moura Brizola, lá nos longínquos anos 90. De lá pra cá a esquerda foi demonizada, literalmente falando, e apenas governadores com o apoio direto das igrejas, especialmente das neopentecostais, conseguiram se eleger. 

Claro que o fato de praticamente todos eles terem sido condenados, presos ou afastados por envolvimento nas mais diversas modalidades de crimes não importa para estes apoiadores e seus fiéis. Esta batalha no terreno da lei não interessa, o que importa é consagrar o Rio de Janeiro ao reino de Jeová. 

A esquerda dormiu e o cachimbo caiu

As esquerdas foram tanto vítimas como culpadas ao mesmo tempo destas seitas cristãs terem florescido e tomado conta do cenário. Com a derrubada do Muro de Berlim e a queda da União Soviética, antes que as esquerdas do mundo pudessem se sentir órfãs e sem rumo, os think tanks liberais da América já tinham planejado, financiado e defendido que as novas pautas das esquerdas ocidentais, antes marxistas ou socialistas, deixassem de pregar a revolução e a mudança social para defender temas eminentemente burgueses, como o feminismo, o antirracismo e o movimento lgbtqia+, ao mesmo tempo que faziam com que a teoria marxista e seus conceitos parecessem anacrônicos e superados. 

Não existe terreno vazio na política. Se você abandona alguém ocupa

Passados mais de 30 anos desde esse momento, hoje podemos ver o resultado de tal campanha ideológica incisiva: uma esquerda acastelada nas universidades, discutindo trivialidades e incorporando à discussão, praticamente em tempo real, cada novidade surgida nos debates estadunidenses, tão apresadamente adaptadas à nossa realidade que nem sequer tempo de ganhar um nome abrasileirado tem — como por exemplo, manspreading, slutshamimg, gaslightining e outros do gênero* — enquanto pobres, trabalhadores, negros e mulheres periféricos, largados e sem esperança, são abraçados pelos irmãos da igreja, nas suas demandas reais.

Como correr atrás do prejuízo

Depois de derrota atrás de derrota política, hoje amplos setores da esquerda pensam numa reação. Já identificaram o erro, mas não se acertam na estratégia. Uns defendem a criação e expansão do que Alysson Mascaro denominou de centros socialistas — uma espécie de adaptação dos primeiros sindicatos da era fordista para o atual capitalismo pós-fordista. 

 Fincando-se espacialmente na comunidade, o Centro Socialista enfrentará as demandas comunitárias mais imediatas. Fará, de modo melhor, aquilo que religiões, instituições benemerentes e clubes associativos já o fazem com limites. A religião tende a converter o serviço social em proselitismo e a explicar a ação social com base em dinâmicas metafísicas. As instituições benemerentes e os clubes associativos via de regra são gestados e geridos por setores da classe média para os quais a contrapartida da prestação de serviços é o reforço da ideologia de suas frações de classe. Tanto as religiões quanto os clubes associativos bloqueiam a luta quando ela alcança contradições maiores que se insurjam contra os poderes e os poderosos, porque sua ideologia de base não é pela alteração da ordem e da sociabilidade. Somente centros que se nomeiem socialistas – e por tal horizonte se movam – poderão tensionar a sociedade sem que esbarrem com percalços imediatos (de classe, de preconceitos, de lucro, de financiamento), ou de expectativas ideológicas de fundo (teologia, repressão, conservadorismo).

Por outro lado, setores mais radicalizados da esquerda defendem a destruição da influência religiosa não como uma etapa estratégica e sim como necessidade urgente. Como se, por exemplo, Lula, eleito que fosse neste segundo turno, pudesse prometer inviabilizar essa ligação trabalhador-igreja sem sofrer nenhuma consequência política. 

Mais eficaz do que isso, e sem fazer oposição à realização dos chamados centros socialistas, acredito que a esquerda deveria fazer um trabalho grandemente revolucionário na comunicação com as massas. Nem aceitar o convívio politiqueiro, interesseiro e degradante com pastores que tratam seus fiéis como gado, nem a imediata destruição da igreja, por simplesmente ser tarefa impossível a curto prazo. 

Em vez disso, a esquerda deveria resgatar, purificar e dar outro sentido ao que representa a "história" (entre aspas porque, embora ateus como eu não acreditem sequer que sua figura histórica tenha existido, para os propósitos aqui levantados tal questão é simplesmente irrelevante) de Jesus Cristo

Jesus, o primeiro socialista

Com um pouco de flexibilidade e boa vontade, é muito fácil associar o legado e o trabalho de Jesus na Palestina naquela época com o que a esquerda defende hoje, e contrapô-los tanto aos fariseus e sacerdotes do Sinédrio de ontem quanto os de hoje. 

Jesus Cristo foi facilmente uma figura bastante progressista no seu tempo, e não faltam exemplos dessa postura naquilo que os fiéis aprenderam a conhecer, sem no entanto, ter capacidade de associar a uma postura verdadeiramente revolucionária, como já demonstrada em alguns livros publicados

Deixem que os evangélicos, já bastante identificados estranhamente com as vestimentas e artefatos do Velho Testamento, com Jeová e suas atitudes xenófobas, mesquinhas e cruéis, fiquem com sua devoção fanática. Que Jesus seja diferenciado como de fato foi, o homem que veio dar ao mundo um outro sentido, uma outra alternativa, de cooperação, de paz, de amor e de respeito com as diferenças. 

Não é um salto muito grande a se dar, e os frutos a se colher podem ser surpreendentemente grandes não só nas próximas eleições, como em todo o nosso convívio social — menos infectado com os sectarismos, as intrigas, os ódios, vinganças e autoritarismos associados diretamente ao Antigo Testamento. 

Que as boas novas representem a queda do capitalismo e a ascensão do socialismo.  

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* Claro que com isso não quero menosprezar a necessária superação de tais preconceitos na sociedade burguesa. Mas sem enquadrar essas lutas no seio da teoria da luta de classes, toda pulverização das forças e as consequentes  lutas atomizadas, sem ligação entre elas, é tudo o que o establishment deseja. 





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