Inacreditável. Cientista política diz que discurso de posse de Lula revela o "nós contra eles"

 

Discurso de posse de Lula no Congresso Nacional. Fonte: Record TV

Pouco tempo atrás, eu enviei no whatsapp um vídeo de um dos maiores especialistas em Coreia Popular no Brasil, o professor e pesquisador Lucas Rubio, a um jovem amigo crítico da experiência norte-coreana — cuja incipiente visão política flertava fortemente com o anarco-capitalismo. 

Esperava que o referido jovem pudesse reconhecer algumas das realizações da revolução naquele país asiático e revisse alguns dos seus pontos de vista bastante negativos. 

O que eu recebi de volta, em breves comentários, foi uma surpresa. E me esclareceu perfeitamente as barreiras que nossas opiniões, pré-formadas durante anos, exercem na aquisição de novas informações que venham a confrontar aqueles pré-conceitos. 

Esperava, especialmente, que este meu amigo "ancap" se encantasse com o fato da Coreia Popular não cobrar impostos dos seus cidadãos desde 1974. Afinal, não é a crítica aos impostos uma das maiores bandeiras desse movimento? 

Eis, no entanto, os reveladores detalhes que mais lhe chamaram a atenção do vídeo que assistiu: 

  • [Viu] o Lucas Rubio falando da utopia [sic] que é a República Popular da Coreia;
  • Onde as ruas são largas por motivos militares;
  • As indústrias são preparadas para produzir material bélico [em caso de guerra];
  • Que o partido cristão lá é o mais liberal [ele é cristão].
Ficou claro que seu olhar durante as tantas horas de vídeo buscou apenas o viés de confirmação das suas ideias já pré-concebidas, na mesma proporção que ignorava todas as outras novas informações as quais ele simplesmente não aceitava.

Mas podemos perdoá-lo. Afinal é um jovem de 18 anos em busca ainda da sua afirmação e sua forma adequada de ver o mundo. 

Mas, e quando o viés de confirmação é praticado por uma doutora em ciência política pela PUC-SP, cuja responsabilidade profissional com o rigor dos fatos deveria vetar tal postura ideologicamente interessada? 

Em entrevista nesta manhã ao programa CBN em Foco, a doutora, também jornalista e escritora Deysi Cioccari deu uma interpretação totalmente sui generis à cerimônia da posse de Lula, realizada na tarde de ontem. Enquanto até adversários políticos, inclusive na imprensa (acredite: tal excentricidade, qual seja, um jornalista que trata político abertamente como seu inimigo de classe, esquecendo a necessidade de disfarçar sua militância sob os falsos pressupostos da isenção jornalística é muito comum) louvaram a posse de Lula como a volta da regularidade democrática, da paz e da normalidade republicana, ela abre a entrevista dizendo, pasmem, que "Lula continua pregando aquele discurso do nós contra eles" (!).

Ela afirma, em seguida, que apesar do "discurso de trazer a paz", existe ainda um "rancor" do Lula e do PT pelo período na prisão, pela sua destituição do poder.

Segundo a cientista política, a composição do ministério deixaria dúvidas sobre "quem é aliado ou não" pois "o núcleo duro da composição do ministério ficou sempre com o PT", (com quem mais ficaria cara-pálida, com o Ciro Gomes?) revelando no discurso da posse uma suposta "desconfiança petista contra aqueles que não o apoiaram ou o apoiaram durante o pleito eleitoral".

Ela afirma ainda que Lula usou de palavras duras como genocídio, barbárie, ódio, "palavras que a gente espera esquecer" [sic], "que seria fruto daquela mágoa e daquele ranço". Só quem quer esquecer é quem lucrou com a prática do genocídio, da barbárie e do ódio; quem foi vítima deles não quer mesmo, e certamente Lula não esquecerá...

A seguir, de forma absolutamente contraditória, bem no estilo "eu vou desdizer aquilo tudo que eu te disse antes", depois de ser questionada pela jornalista se havia alguns pontos a serem destacados da cerimônia, a Doutora Deysi afirmou que "ele [Lula] falou muito em reunificar o país", mas era fruto de uma "ambiguidade" de quem "quer se reencontrar" [sic]. 


É inacreditável que uma pessoa treinada na ciência política tenha tido esse tipo de interpretação enviesada. Provavelmente foi o trecho do discurso de posse abaixo que gerou essa conclusão da entrevistada: 

Foi a democracia a grande vitoriosa nesta eleição, superando a maior mobilização de recursos públicos e privados que já se viu; as mais violentas ameaças à liberdade do voto, a mais abjeta campanha de mentiras e de ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado.

Nunca os recursos do estado foram tão desvirtuados em proveito de um projeto autoritário de poder. Nunca a máquina pública foi tão desencaminhada dos controles republicanos. Nunca os eleitores foram tão constrangidos pelo poder econômico e por mentiras disseminadas em escala industrial.

No entanto, podemos dizer que Lula praticou o discurso do "nós contra eles", ou apontou um fato inquestionável nesta fala, que foram as mais perversas e criminosas atitudes "deles contra nós"?

Outro trecho da fala de Lula que certamente influenciou a opinião da referida entrevistada foi 

Este processo eleitoral também foi caracterizado pelo contraste entre distintas visões de mundo. A nossa, centrada na solidariedade e na participação política e social para a definição democrática dos destinos do país. A outra, no individualismo, na negação da política, na destruição do Estado em nome de supostas liberdades individuais.

Mais uma vez, tem-se uma fala precisa por parte de Lula. O "lado de lá" passou quatro anos fomentando a desunião, o ódio, a guerra ideológica, religiosa e até social, armou os seus e se preparou praticamente para uma guerra civil. Existe sim um racha na sociedade brasileira e não foi Lula quem o criou, muito menos por suposta "mágoa" de ter sido preso, não obstante o fato de que tal sentimento possa ser totalmente justificável. Apontar o óbvio como fez Lula no discurso não é fomentar o nós contra eles. Esse processo está dado e trata-se de um processo natural na politica burguesa. 

A não ser que a cientista política tenha o desejo que esqueçamos tudo o que passamos nesses quatro anos para confraternizar com quem estava literalmente até ontem pregando ditadura e golpe de estado.

Mas, tal qual nosso referido jovem amigo que buscava apenas um viés de confirmação, a cientista política resolveu ignorar todo o longo conteúdo do discurso para focar apenas nesses parágrafos, justamente o que mais se encaixava na ideia de que "Lula ainda tem rancor da prisão", conclusão que não pode ser corroborada em nenhuma das dezenas e dezenas de pronunciamentos que eu assisti na íntegra desde que o presidente foi solto. Muito pelo contrário, disse por diversas vezes que não queria ser presidente pra ficar olhando pra trás. 

Em momentos da entrevista no parlatório, Lula disse: 

Mas quero me dirigir também aos que optaram por outros candidatos. Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia. É hora de reatarmos os laços com amigos e familiares, rompidos pelo discurso de ódio e pela disseminação de tantas mentiras....


Sem dúvida que foram essas palavras que causaram confusão na entrevistada a ponto dela se referir a Lula como "ambíguo". 

O fato é que ela confundiu a análise da realidade do país rachado por Bolsonaro do primeiro discurso, com a intenção de conciliação nacional de Lula, deste segundo discurso.

E por quê?
 
Porque os liberais se borram de medo que Lula dê uma guinada para a esquerda. Precisam achar elementos que confirmem qualquer suspeita neste sentido, para "acusá-lo" de querer ser o Bolsonaro da esquerda, numa conclusão que faria a Hannah Arendt, mãe da lamentável teoria da ferradura, uivar de orgulho.
 
Os liberais querem o Lula apaziguador, conciliador e obediente dos preceitos do mercado. E o discurso de Lula, por mais que apenas tenha apontado fatos, "assustou o mercado". ( e aqui vai, com o perdão do meu francês, o meu grandessíssimo foda-se)

O mercado não se assusta com as várias insanidades bolsonaristas na política porque na economia, o governo anterior seguiu fielmente a cartilha liberal. Na economia, o mercado e bolsonaro estão do mesmo lado. São "eles". 

Mas um Lula politicamente radical representaria um Lula em oposição aos preceitos da economia neoliberal que Paulo Guedes tocou com tanto afinco. Daí o medo que Lula parta para o conflito do "nós contra eles". Os liberais sabem muito bem que são os "eles" dessa história, junto com os genocidas, os negacionistas e afins. 

Nossa função é juntar forças com o governo PT para fazer pressão no governo. Todos nós juntos precisamos derrotar a política econômica deles. Os liberais que se preparem. Combater o bolsonarismo é combatê-los também. 




Comentários

  1. Aparentemente é uma dessas jornalistas de viés liberal, não a toa estava dando entrevista na cbn.
    Vc acha que a cbn traria uma outra pessoa que fosse falar bem do governo? Claro que não

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