Flamengo, austeridade e FMI

 

Eduardo Bandeira de Mello eleito presidente. (Fonte: Gazeta do Povo)

Durante boa parte dos anos 80 até 2013, o Clube de Regatas do Flamengo foi associado a uma completa desorganização financeira, como a maioria dos outros clubes do futebol brasileiro. 

Gastos acima das receitas, dívidas astronômicas, risco de insolvência, ameaça de penhoras a patrimônio imóvel, centenas de processos trabalhistas por falta de pagamento de salários a jogadores são algumas peças que compõem esse cenário triste, resumido na célebre frase do ex-jogador Vampeta: "eles fingem que me pagam e eu finjo que jogo".

Até que em 2013, um grupo de sócios ligados ao mundo financeiro e empresarial se juntou para mudar este quadro calamitoso, vencendo as eleições do clube naquele ano. A partir daí, seria colocada em prática uma operação de resgate da credibilidade do clube através do pagamento das dívidas, conseguida com bastante sacrifício do clube e de muita paciência da torcida, que aguardou durante seis anos a promessa de que o Flamengo iria se tornar uma grande potência do futebol depois desse processo. 

E de fato, depois de várias temporadas de times fracos e lutas contra o rebaixamento, a profecia se realizou. 

Hoje o Flamengo é sempre citado nos boletins de análise financeira de bancos como um exemplo de gestão, por ter saído, em 2012, de uma arrecadação de 120 milhões anuais e uma dívida de 800 milhões, para uma arrecadação bruta 10 vezes maior (1,2 bilhão de Reais) e uma dívida totalmente equacionada na casa dos 250 milhões. Uma façanha que passou a refletir em campo, com diversos títulos importantes. 

Tudo isso foi creditado à austeridade financeira do presidente do clube no período dessa transição. Eduardo Bandeira de Mello, um ex-funcionário de carreira do BNDES, que se dispôs a resolver esse grande pepino histórico — feito que lhe valeu como prêmio um mandato de deputado federal pelos votos da torcida rubro-negra. 

Sua "bandeira" (com o perdão do trocadilho) de campanha e atuação no Congresso não poderia ser outra a não ser a defesa da austeridade financeira como solução dos problemas do país. O Flamengo de hoje, rico e disputando a hegemonia do futebol continental, é seu grande garoto-propaganda nesse processo. 

E é aí que a porca torce o rabo. 

Nosso país, assim como o Flamengo, também passou e ainda passa por periódicas crises econômicas. Economistas ligados ao setor financeiro passaram a tentar emplacar a ideia de uma política de austeridade no Brasil como solução dos nossos problemas, através de uma falácia bem simplória, que tem o grave defeito de ser repetida sistematicamente e muito assimilada pela maioria da população:

 "Política econômica não é diferente da sua casa. Dona Maria lá no interior de Minas sabe que não se pode gastar mais do que se ganha". 

É exatamente a mesma sugestão que o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomenda para os países em desenvolvimento da periferia do mundo. "Não gastem em políticas sociais, não gastem em construir infraestrutura, não gastem nisso, não gastem naquilo, corte aqui, corte acolá, e faça superávit". 

Superávit pra quê? Essa parte eles não contam, é claro... 

O FMI foi criado no contexto do fim da II Guerra Mundial junto com outras instituições financeiras para ajudar a reestruturar a nova ordem econômica mundial sob a tutela dos Estados Unidos, e cumpriu discretamente o seu papel até meados dos ano 70, quando passou a ser instrumento de persuasão e chantagem. A partir daí, o fundo passou a condicionar seus empréstimos à aplicação de uma receita econômica que tinha na austeridade um de seus maiores pilares. 

O FMI passou a ser o maior agente na implementação do Consenso de Washington na economia periférica do mundo ocidental, que se convencionou chamar de neoliberalismo

Seus consultores passaram a dar pitacos na política econômica de diversos países economicamente fragilizados, sugerindo a abertura do mercado, a queda de barreiras tarifárias, o relaxamento de leis trabalhistas, privatização de empresas públicas, controle da inflação e tantas outras medidas draconianas que impediam o governo desses países de aplicar suas receitas em políticas públicas em favor da população. 

O resultado foi a transferência de grande parte da renda nacional a poucos investidores que recebiam juros da dívida pública, aumentando o fosso da desigualdade social nestes países pobres. 

Essa prática econômica não tem nada de técnica, científica, é meramente ideológica, pensada como uma nova forma de exploração imperialista dos países ricos nas riquezas dos países pobres. Esse processo, que, no passado, já teve invasão, saque, escravidão, genocídio, hoje é mais sutil, através destes mecanismos de transferência de riqueza financeira. 

A falácia da "Dona Maria", bem ao gosto dos economistas ligados de alguma forma ao setor financeiro espoliador de nossas riquezas, é enganadora em diversos aspectos.

Primeiro, diferentemente de qualquer pessoa física ou entidade, um país é capaz de soberanamente emitir sua própria moeda. Isso lhe dá a prerrogativa de se endividar, e muitos países ricos tem dívidas públicas muito maiores do que o Brasil. São essas dívidas que permitem investimentos, que farão a economia girar, provocando o retorno indireto desse investimento, através de arrecadação. 

Ou seja, ao contrário de Dona Maria, que precisa arrecadar pra gastar, um país muitas vezes precisa gastar para arrecadar. E uma política de austeridade impede esse processo, colocando uma barreira ao crescimento do país, 

E segundo, se dona Maria ganha uma pensão de um salário mínimo mas quer comprar uma geladeira nova, até ela mesma pode contrair uma dívida para pagar sua geladeira em suaves prestações. Ela pode até se complicar com algum gasto imprevisto e deixar de pagar a sua geladeira, tendo o seu nome inserido do Serasa. O que não pode é o Serasa, por conta disso, se meter na vida financeira da Dona Maria, dizendo que ela tem que deixar de comprar a comida dos filhos para pagar a dívida da geladeira. E é isso que o FMI quer com sua política de austeridade nos países em desenvolvimento. 

Pra finalizar, vamos voltar ao Flamengo. Será que o Flamengo ficou tão rico apenas gastando menos do que arrecadava? 

É claro que não. 

O clube passou a negociar com o governo situações mais favoráveis como o Profut, que permitiu o clube pegar empréstimos e pagar suas dívidas com juros bem abaixo do mercado. O Flamengo trocou de dívida. Pagou seus credores com dinheiro emprestado pelos bancos do governo com juros menores do que a média, o que criou um cenário favorável a novos investimentos. Ou seja, se endividou para deixar de dever. E o governo, por seu turno, aceitou o "prejuízo" na renegociação das dívidas porque sabe que um Flamengo rico paga mais imposto (retorno financeiro) do que um clube endividado e sem receita. Perde agora para ganhar no futuro. 

Tudo isso seria contraindicado pelo FMI. O Flamengo teria que gastar menos do que arrecada pra crescer (que é a falácia da austeridade) e o governo não poderia emprestar "tomando prejuízo", mesmo que isso fizesse a economia nacional crescer e com isso aumentar a arrecadação no futuro.  

Ou seja, o FMI não serviria nem para abrir uma escola de educação financeira para donas de casa, quanto mais definir a política econômica de uma nação soberana. 

 






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