Inflação baixa é realmente tão importante?

Dinheiro

Quem tem por volta dos trinta e poucos anos de idade, como eu, há de se lembrar como era penosa a vida nos anos 80 e começo dos anos 90, quando a inflação atingia números estratosféricos e liquidava as suadas economias dos brasileiros. Foi mais ou menos por esta época que uma série de fatores coincidiram no mundo para favorecer o surgimento das políticas econômicas neoliberais na América Latina, e a conclusão de que inflação baixa era a prioridade máxima para a saúde financeira de um país. Naquele momento de desespero, todo mundo parecia concordar. Mas será que inflação baixa é tão necessária assim?

Começa a campanha neoliberal

O ex-presidente norte-americano, Ronald Reagan, tratou de criar o bicho-papão que deveria amedrontar durante as décadas seguintes os políticos e economistas dos países em desenvolvimento, ao pronunciar, no final dos anos 70, uma ideia tão negativa sobre a inflação que quase podemos visualizá-la na sua fala: “A inflação é tão violenta quanto um ladrão, tão assustadora quanto um assaltante armado e tão mortífera quanto um matador profissional1. Para os neoliberais, alcançar metas de inflação a zero ou perto de zero virou uma obsessão. Entre 1 e 3 por cento, é até tolerável; mais do que isso, liga-se o sinal de alerta.

FMI empresta, se você seguir a cartilha

Sabe quando alguns religiosos sem escrúpulos se aproveitam do nosso momento de maior dificuldade e vulnerabilidade emocional para nos apresentar as maravilhas da sua fé? Pois bem, nos momentos de maior sufoco financeiro dos países em desenvolvimento, coube ao FMI, nas últimas décadas, dar o suporte financeiro para salvar a economia desses países. O problema é que, com o passar dos tempos, o Fundo Monetário Internacional passou a condicionar seus empréstimos a alguns ajustes que os países pobres deveriam fazer – na verdade, o FMI atua para que os países “atrasados”, no seu momento de maior vulnerabilidade, se adequem ao neoliberalismo e tudo o que isso representa. Dentre os inúmeros ajustes impostos pelo fundo, manter a taxa de inflação bem baixa é uma das prioridades máximas, pois, segundo manda a ortodoxia neoliberal, “quanto mais baixa é a taxa de inflação de um país, maior será seu desenvolvimento econômico”. E para garantir que se consiga atingir tais metas, o Banco Central deve ser “protegido” de influências políticas e ter o maior grau de autonomia possível para executar medidas que o eleitorado pode considerar “impopulares”. Não foram essas exatamente as propostas mais ouvidas nessa última eleição?

Brasil: inflação alta e crescimento alto nos anos 70

Mas parece que existe uma discrepância muito grande entre o que o FMI e os economistas neoliberais do mainstream pregam e os resultados que eles geram. Por exemplo, nos anos 60 e 70 a taxa de inflação média no Brasil era de 42 por cento ao ano (bem alta para os padrões atuais). Mas apesar disso, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo durante esse período (temos muitas críticas e divergências profundas com os regimes militares, mas não podemos dizer, pelo menos, que eles eram adeptos da não-intervenção do Estado na economia). Por outro lado, entre 1996 e 2005, seguindo religiosamente as recomendações da cartilha neoliberal tucana – que PT preferiu não romper no seus governos –, a taxa de inflação foi de 7,1% ao ano no país. No entanto, a renda per capita cresceu apenas 1,3% nesse período, segundo nos mostra o economista sul-coreano de Cambridge, Ha-Joon Chang2.

Claro, com isso não vamos defender que voltemos à era de apertos e esfacelamento da economia do final dos anos 80 até 1994, quando a inflação chegou a atingir a marca de mais de 700 por cento ao ano. Não se trata disso. Nem dizer que inflação por si só é algo maravilhoso – as crises econômicas da Argentina de meados dos anos 90 com Carlos Menem e Domingo Cavallo não nos dão ilusão a esse respeito. Mas há uma diferença colossal em admitir a natureza destrutiva da hiperinflação – que são, de fato, os casos do Brasil dos anos 80 e da Argentina dos anos 90 – e argumentar, como os neoliberais, que quanto mais baixa é a inflação, melhor para o país, o que não é verdade.

A hiperinflação sim, realmente é danosa, mas a inflação moderada, por volta de 40 por cento ao ano, não é necessariamente ruim – pelo contrário, pode ser compatível com o crescimento rápido e a criação de empregos, como mostra Chang em seu trabalho3.

Por que neoliberais defendem inflação baixa

Se os neoliberais são obcecados por inflação baixa, a justificativa que dão é que ela atinge mais pesadamente os trabalhadores de rendimentos fixos. Muito bem, mas essa é apenas metade da verdade. O outro lado dessa moeda, nunca mencionado, é que inflação baixa pode proteger os ganhos dos trabalhadores, mas as políticas de cortes e austeridade necessárias para mantê-la nesse nível podem reduzir o que eles ganhariam no futuro, exatamente o que tem acontecido agora no Brasil. Segundo Ha-Joon Chang,

As políticas monetária e fiscal restritivas necessárias para a inflação mais baixa, especialmente um nível bem baixo de inflação, também levam a um nível de redução de atividade econômica, que, por sua vez, baixará a demanda por trabalho e, portanto, aumentará o desemprego e reduzirá os salários

A verdade é que, no modelo neoliberal, metas de controle de inflação não são feitas para assegurar o bem-estar dos trabalhadores; elas são criadas para dar estabilidade aos grandes negócios. Os investidores não gostam de incertezas, e o governo trata de criar o ambiente seguro e favorável para seus lucros. Vejam, por exemplo, o caso da tão defendida autonomia do BC. Todas as atenções do banco se dirigem para o controle da inflação, muito mais do que um crescimento mais robusto ou uma taxa de desemprego mais baixa. Ainda dizem que os funcionários do Banco Central são tecnocratas e não-partidários. Sabe-se muito bem que eles buscam ouvir com muita atenção a opinião do setor financeiro e implementar políticas que agradem aos magnatas do empresariado, se necessário, às custas do sacrifício do país inteiro, conforme vários e vários exemplos pelo Brasil e pelo mundo. Então, quando esses setores clamam a autonomia do Banco Central perante as políticas do governo, estão na verdade exigindo uma independência da instituição que lhes permite aplicar políticas que beneficiam seus próprios negócios livremente, sem que pareça que isso está ocorrendo – como por exemplo, o controle obsessivo da inflação. Isso é não-partidário? Isso é democrático? Isso é de fato, neutralidade e independência? É óbvio que não.

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1 The Los Angeles Times, 20 de outubro de 1978

2 CHANG, Ha-Joon, Maus Samaritanos – O Mito do Livre-Comércio e a história secreta do capitalismo. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2009 (p. 146)

3 Op. cit. pp. 147-48

Taxa de inflação é obsessão nacional com 29 indicadores divulgados por mês

Brasil.gov.br: economia





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