Depois do mito da democracia racial, é o fim da “democracia social”

  Conflitos aumentam no Brasil

A tese conservadora das classes dominantes brasileiras, da academia, etc. desde Gilberto Freyre e daí para o senso comum da sociedade dizia que, no Brasil, o racismo era mais “suave” do que em outras partes do mundo ou sequer existente; que aqui, ele não era institucionalizado, como nos Estados Unidos ou na África do Sul, e portanto, os negros teriam as mesmas oportunidades de ascensão social do que os brancos. Durante muitas décadas, essa tese vingou plenamente. Por quê?

Porque atendia, em certa medida, tanto as pretensões de brancos quanto a de negros. As elites brancas se beneficiavam do mito porque assim não se sentiam culpadas por sua posição social privilegiada, já que qualquer um poderia “trabalhar duro e chegar lá”, e também porque não seriam obrigadas a agir para mudar um quadro de segregação racial que, supostamente, não existia.

Os negros se beneficiaram, em alguma medida, porque eram tolerados, desde que se enquadrassem aos papéis que lhes fossem atribuídos. Um ou outro poderia até ascender ao topo, como foram os casos do engenheiro André Rebouças, do escritor Machado de Assis no século XIX e do antropólogo Nina Rodrigues nos anos 30 do século XX. Essa assimilação e esse tratamento disfarçado também ajudaram a ocultar os verdadeiros conflitos de raças no país, dificultando aos negros a consciência plena de sua condição e de seu lugar marginalizado na sociedade.

Esse quadro perdurou até o final do século XX, quando os negros então conseguiram se organizar e influenciar políticas públicas que visavam justamente desconstruir o mito da democracia racial brasileira. Nesse ponto, a acomodação racial já não é possível, e o racismo, embora existente desde sempre, se não era explícito naquela época, passou a ser agora na medida em que aumenta a ascensão social dos negros e os conflitos raciais ficam cada vez mais evidentes – e aí entendemos porque vemos tantas reações preconceituosas descaradas nesses últimos tempos.

A reação é o indício da mudança

De modo similar, o mito da democracia social – visto aqui como a ideia de que todos os cidadãos brasileiros teriam supostamente as mesmas condições de estudar, trabalhar e gozar a felicidade, e que a meritocracia, ou seja, a capacidade e o empenho de cada um determinariam o sucesso ou o fracasso do indivíduo – perdurou durante muitos anos no Brasil. O mito serviu para ocultar os conflitos de classe social, as desigualdades e os privilégios de certos grupos em detrimento de outros, acomodando a todos sob uma mesma ideologia dominante: ideia do brasileiro como membro de um povo feliz, abençoado por deus e que vive a vida com otimismo apesar de todos os sofrimentos. Mas com a ascensão das classes mais baixas ao nível do consumo, e principalmente com uma maior conscientização popular por causa da internet, começaram a surgir também os conflitos de classe.

Parece que chegamos ao ponto em que, tal como no caso da democracia racial, o mito da democracia social já não funciona mais, e a população brasileira, depois de se dar conta da sua verdadeira condição, resolveu sair às ruas cobrar os anos de abandono e dificuldades a que foi submetida. Pois é exatamente neste momento que as classes privilegiadas, percebendo que a ilusão do mito começa a falhar, lança mão do seu aparato de violência estatal – a polícia – para atacar os protestos populares. E assim se explica o porquê de tantas bombas, tantas balas de borracha, tanto gás de pimenta, tantas prisões arbitrárias e tantas leis que criminalizam os movimentos sociais – são as classes dominantes tentando manter tudo como está.

Se tem duas coisas que podemos aprender com a história, são essas: primeiro, sempre que a ideologia da acomodação falhar, a solução das classes dominantes é a violência. E segundo, a forte reação dessas mesmas classes conservadoras para tentar manter o status quo é o próprio indício de que o modo de vida que até então regulou a sociedade brasileira começa a ruir definitivamente.





Comentários

  1. Pedro Paulo de Castro23/09/2013, 11:39

    No fim das contas, eu entendo que as pessoas realmente abriram os olhos. Finalmente estão saindo do comodismo para enfrentar as desigualdades sociais nas ruas. Mas é muito preocupante que grande parte daquelas milhares de pessoas que saíram às ruas nas campanhas de junho tenham se voltado contra alguns manifestantes, na onda do PIG. É preciso ainda lutar muito mais contra essa força imensa, mas pelo menos algumas pessoas conseguiram identificar onde está o problema.
    Parabéns pela ótima postagem.

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