O que é “consenso sobreposto” e por que estamos tão longe dele

Nas nossas sociedades ocidentais, cada vez mais pluralistas e diversificadas, têm havido um tipo de conflito que vem merecendo a atenção de estudiosos, filósofos e cientistas políticos. A dificuldade de conciliar nossos interesses singulares, nossas visões pessoais de mundo, com uma sociedade onde prevaleça a ideia de valores políticos comuns acima das particularidades. Como podemos conciliar essa dualidade entre o privado e o público em nome da boa convivência e do bem de todos?

As pessoas, de modo geral, além de uma concepção de justiça baseada na equidade, apresentam valores individuais, ancorados nas visões políticas ou religiosas da comunidade em que vivem. A população de uma sociedade pluralista apresenta uma série de visões diferentes, tantos quantos forem os grupos, comunidades, minorias ativas, muitas vezes conflitantes e que representam um desafio para uma sociedade tradicional que se pretende unitária, coesa. Esse assunto foi tema de um artigo publicado pelo doutor em Filosofia e professor da USP, Cícero Araújo, no livro Ontologia, Conhecimento e Linguagem1. Segundo ele, essa diversidade de ideias não necessariamente é algo negativo, desde que alguns princípios básicos estejam envolvidos – coisas que as sociedades mais avançadas já desenvolveram, mas que nós, aqui no Brasil, estamos muito longe ainda, conforme veremos.

Intolerancia

Em busca do consenso sobreposto

Cícero Araújo aborda o conceito de “consenso sobreposto”, lançado pelo professor de Filosofia Política de Harvard, John Rawls (1921-2002), na intenção de mostrar que tais sociedades repletas de visões divergentes são capazes de “construir a mais profunda estabilidade que se pode imaginar”. A palavra-chave para essa finalidade é a tolerância.

Numa sociedade onde os cidadãos estão sempre em conflito com suas lealdades – tanto a lealdade política que deve à comunidade em geral, quanto ao grupo particular a que pertence, que Rawls chama de “igreja” –, é dever do Estado administrar essa tensão através do princípio de justiça. O conceito de consenso sobreposto, como um tipo de pacto de convivência acima das diferenças particulares, tem a finalidade de tornar tais conflitos complementares e harmônicos entre si.

Brasil ainda longe desse caminho

Embora diversos países tenham conseguido sucesso nessa proposta, certamente, não é o caso do Brasil. No nosso país, temos exemplos de como estamos longe de atingir essa meta tanto no campo político, quanto no campo religioso. E ambos os fenômenos estão ligados, porque são consequências de uma reação conservadora à relativamente recente ascensão de diversos grupos até então sem voz, ou seja, uma maior pluralidade na sociedade brasileira: minorias étnicas, religiosas, politicas e de gênero que buscam igualdade de direitos, alargando assim a diversidade – e potencializando inevitáveis conflitos com os setores até então privilegiados.

Religiões na raiz da intolerância

Na Grã-Bretanha, terra de enormes conflitos religiosos no passado, tivemos uma maior tendência à tolerância entre as diversas seitas protestantes, passados 200 anos de convívio plural e diversificado entre elas. Curiosamente, menos no caso da Igreja Católica. O filósofo David Hume, segundo Cícero Araújo, explicou que as facções religiosas fundadas no “entusiasmo” como as protestantes, embora sejam intolerantes e perturbadoras da paz social num primeiro momento, tendem a se tornar mais tolerantes com o passar do tempo. Enquanto isso, as fundadas na “superstição” como a católica, apresenta tendência inversa.

Mas será que essa lógica se aplica ao Brasil?

Creio que não. A Igreja Católica desembarcou no Brasil desde os primeiros momentos, teve sua fase mais violenta durante a época colonial, mas durante o século XX se tornou uma das Igrejas mais moderadas do mundo – pelo menos de acordo com Scott Mainwaring em seu livro Igreja Católica e Política no Brasil. Já as seitas neopentecostais surgiram no final de três fases no país: dos pentecostais históricos na primeira década do século XX (Assembleia e Cristã); dos pentecostais da segunda geração, surgidos a partir da década de 50 (Quadrangular, Brasil para Cristo, Casa da Benção, Deus é Amor); e dos neopentecostais, surgidos a partir da década de 70 sendo a principal a Universal do Reino de Deus de Edir Macedo. Esses últimos representam o que há de mais intolerante, odioso e sectário em termos de respeito às diferenças, e um grande problema para a sociedade brasileira. E o passar do tempo os tem feito piorar, não melhorar.

Sua rivalidade, ao contrário de outros países na Europa, não se dá tanto contra as demais seitas ou religiões rivais (com exceção das religiões afro-brasileiras), e sim contra determinados segmentos sociais ditos minoritários: gays, mulheres, ateus, movimentos de esquerda e outros. Ancorados no direito à manifestação religiosa, seus líderes vêm propondo verdadeiras campanhas de perseguição contra esses grupos – e nada indica que o tempo irá moderá-las.

Segundo o professor Cícero Araújo, “enquanto o conjunto de cidadãos não conseguir ‘embutir’ a concepção de justiça nas doutrinas religiosas, filosóficas ou morais que abraçam, não se poderá dizer que a esfera política tornou-se comum o suficiente para estabilizar-se” Eis o grande desafio para o Brasil nos próximos anos. Combater os sectarismos e colocar o consenso sobreposto na agenda política em nome da diversidade e da pluralidade apesar de todas as reações conservadoras.

1 ARAÚJO, Cícero. Tolerância, Metafísica e Ceticismo. In: PINHEIRO, Ulysses; RUFFINO, Marco e SMITH, Plínio Junqueira (orgs.) Ontologia, Conhecimento e Linguagem. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.





Comentários

Gostou do blog e quer ajudar?

Você também poderá gostar de:

Comunistas não podem usar iPods ou roupas de marca?

Qual é o termo gentílico mais adequado para quem nasce nos Estados Unidos?

Singapura, exemplo de sucesso neoliberal?

O mito do livre mercado: os casos sul-coreano e japonês

CBF reconhece o título do Flamengo de 1987. Como se isso fosse necessário