Como os homens manipulam a “vontade de Deus” de acordo com suas necessidades: a questão do lucro


Constantino, o Grande, (imagem) é frequentemente lembrado como aquele que manipulou politicamente a seu favor a “vontade de Deus” no I Concílio de Niceia, em meados do séc. IV, declarando Cristo como divino. Mas no séc. XVI, na Reforma Protestante, outra polêmica que se tornava religiosamente cada vez mais difícil de contornar exigiu que os homens debatessem e decidissem mais uma vez qual era a opinião de deus: a questão do lucro.
A Igreja Católica, sempre firme nas suas tradições, demorou a compreender a transição por que passava o mundo naqueles anos do Renascimento. O mundo medieval no qual ela reinava absoluta estava chegando ao fim. Como afirma Leo Huberman[1]:
Quando ocorreu a revolução dos modos de produção e troca, que denominamos de modificação do feudalismo para o capitalismo, o que aconteceu à velha ciência, ao velho direito, à velha educação, ao velho governo, à velha religião? Também se modificaram.
Neste mundo novo que surgia, comandado pelos comerciantes e banqueiros, a religião católica se tornava mais do que obsoleta: ela era um empecilho à nova sociedade baseada no comércio, nos negócios — enfim, no lucro — pois condenava severamente a usura. O mundo demandava uma nova religião.


Assim como, mais tarde, economistas liberais iriam atacar as amarras do mercantilismo, naquele século XVI Martinho Lutero, Calvino e outros reformadores iriam atacar as amarras do catolicismo. O discurso a favor do lucro agradou aos príncipes e assim, sob proteção estatal, nascia a Igreja protestante. As pessoas queriam enriquecer sem culpa, sem medo de irem para o inferno. “[A igreja protestante] dividiu-se em muitas seitas diferentes, mas em todas, em graus variados, o capitalista interessado nos bens materiais podia encontrar consolo” [2].
Os protestantes souberam interpretar o espírito de sua época e saíram na frente, oferecendo aquilo que as pessoas queriam. Mas onde fica Deus nesta história?
O mundo passou séculos acreditando que a usura era pecado porque Deus condenava o lucro. Mas como a sociedade medieval era praticamente autossuficiente economicamente, a condenação da usura recaía convenientemente sobre os judeus, que viviam do comércio e do empréstimo de dinheiro. Mas depois, com o crescimento da economia, o comércio se espalhou pela Europa, e os reformadores decidiram que os homens tinham o dever de lucrar, com o beneplácito de Deus. Tomemos por exemplo os protestantes puritanos: enquanto os legisladores católicos advertiam que o caminho da riqueza podia ser a estrada do inferno, o puritano Baxter dizia a seus seguidores que se não aproveitassem as oportunidades de fazer fortuna, não estariam servindo a deus:
Se Deus vos mostra o caminho pelo qual podeis ganhar mais, legalmente [...] e se recusais, escolhendo o caminho menos lucrativo, estareis faltando a uma de vossas missões, e rejeitando a orientação divina, deixando de aceitar Seus dons para usá-los quando Ele o desejar.[3]
Teria Deus mudado de opinião? Ou seria Deus apenas claramente um pretexto para os homens justificarem suas necessidades de acordo com o contexto histórico? A resposta parece clara...

[1] HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Editora Guanabara. Rio de Janeiro, 1986
[2] Ibidem
[3] Ibidem




Comentários

Gostou do blog e quer ajudar?

Você também poderá gostar de:

Comunistas não podem usar iPods ou roupas de marca?

Qual é o termo gentílico mais adequado para quem nasce nos Estados Unidos?

Singapura, exemplo de sucesso neoliberal?

O mito do livre mercado: os casos sul-coreano e japonês

CBF reconhece o título do Flamengo de 1987. Como se isso fosse necessário