Surpresa: programas "assistencialistas" têm raízes na tradição liberal


Quando o movimento LGBTQIA+ começou a ganhar força e protagonismo, uma de suas bandeiras mais fortes foi a campanha para que as pessoas parassem de se referir ao seu modo de vida como "homossexualismo " —pela carga negativa que o sufixo "ismo" carrega —, induzindo-nos a preferir o uso do termo "homossexualidade". E eles estavam certos, afinal, sabemos como o uso maldoso da linguagem pode reforçar estigmas sociais.

Falando agora de política, algo de similar ocorreu durante muito tempo nessa área, pelo menos nos últimos 15 anos com relação a um específico programa social: toda a política de transferência de renda que foi patrocinada pelos governos Lula e Dilma eram tachados de "assistencialismo", exatamente, como se houvesse ação inerentemente dolosa de um político em usar a máquina pública em favor dos mais necessitados (paternalismo) para produzir políticas públicas em favor dos pobres (populismo). 

Estas práticas só tem todos esses "ismos" quando um governo progressista por acaso chega ao governo, como se fosse uma característica negativa peculiar das esquerdas. Mas o que a burguesia brasileira não sabe — como parece ser o caso dos editores do Instituto Liberal — ou finge não saber é que as políticas "assistencialistas", na verdade, têm sua origem no seio da teoria liberal.

É o que defende, por exemplo, um dos papas dessa vertente ideológica: Milton Friedman, no seu livro Capitalismo e Liberdade, de 1962. Nele podemos ler o defensor do Estado Mínimo dizer, com todas as letras, que o governo deve fornecer um piso mínimo de renda para os pobres, ou o chamado "Imposto de Renda Negativo". 

Outro ídolo das massas liberais, Friedrich Hayek também é a favor da transferência de renda aos pobres pelas mãos do Estado. No seu livro Fundamentos da Liberdade, o autor pró-mercado-livre defende claras ideias redistributivas.

Dentre aqueles burgueses que cautelosamente reconhecem o papel destes teóricos na defesa da redistribuição de renda estão os editores do site ultraliberal mises.org.br, que no entanto, queixam-se mais, não por estas ideias terem alguma contradição com os conceitos do liberalismo e sim por estarem sendo citadas pelos opositores da esquerda para justificar o Bolsa-Família.

Ficou esquecido pelo meio do caminho que a política de redistribuição de renda não é incompatível com o liberalismo — pelo contrário, faz todo sentido para os teóricos do capitalismo —, porque ela ajuda a manter os pobres anestesiados, ao atenuar os efeitos perversos da acumulação de riqueza e desigual distribuição de renda produzidas pelo sistema, desarmando assim uma bomba-relógio capaz de produzir imprevisíveis cenas de revoltas populares. No entanto, curiosamente qualquer programa que remetesse a essa prática religiosamente capitalista produzida por um governo do PT era logo taxado pejorativamente de "assistencialismo".

Isso, pelo menos, até o PT sair do poder e o governo Bolsonaro chegar a propor um programa de transferência de renda próprio chamado Renda Brasil, que acabou sendo vetado recentemente. Será o fim dos programas de transferência de renda? Absolutamente, não. 

Tentou-se, com o Renda Brasil, claramente, um eufemismo, um disfarce para substituir um programa desgastado por anos de críticas da própria burguesia brasileira, mas estrategicamente necessário, apoiado até por ninguém menos do que Paulo Guedes, o pau-mandado do ultraliberalismo ortodoxo no governo.

Não se surpreendam se, para fugir dos estereótipos, o que até recentemente tem sido chamado de assistencialismo passe a ser chamado de assistencialidade pelos liberais, pela mídia e por um governo afeito a eufemismos baratos, como a Carteira Verde e Amarela, Casa Verde e Amarela, etc.

A hipocrisia é outra tradição liberal. 





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