PL da Bala Solta: as esquerdas devem ser contra?

fonte: pragmatismo politico
 

A discussão sobre como o Brasil deve regulamentar o porte de armas de fogo e munição para civis tem estado presente, com mais frequência, desde pelo pelos 2003, quando tem início a campanha pelo desarmamento. Naquela ocasião, o esforço resultou na entrega voluntária de quase quatro milhões e meio de armas de fogo pela população, que foram destruídas pelo Exército. 

Em 2005, no embalo deste movimento, realizou-se o referendo das armas de fogo, onde seria perguntado ao cidadão se ele era a favor ou contra o comércio de armas de fogo no Brasil, questão referente ao artigo 35 do estatuto do desarmamento. E a partir daí, criou-se uma confusão que os defensores do porte de armas e munições no Brasil vêm se aproveitando para emplacar o lobby da bala no país. 

O resultado final foi de 59.109.265 votos "não", ou seja, contra a proibição do comércio de armas e munições (63,94%), enquanto 33.333.045 votaram pelo "sim" (36,06%).

Como consequência, não foi aprovado o artigo 35 do estatuto (Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003). Tal artigo apresentava a seguinte redação: "art. 35 - É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei".

Seguindo a letra fria da lei, a não aprovação do artigo 35 apenas permitia que o comércio de armas de fogo e munições continuasse a acontecer no país. No entanto, usando de uma estratégia ardilosa, os defensores do lobby da bala no país deram uma interpretação tendenciosa ao resultado do referendo. Segundo eles, a população brasileira não apenas apoiava a comercialização de armas de fogo, mas também o porte individual de armas, que é um passo além da simples posse. 

De la pra cá, a bancada da bala no Congresso vem atuando consistentemente para emplacar a liberalização cada vez maior de armas no país. O último reflexo dessa postura é o PL 3723/2019, apelidada de PL da Bala Solta, que tem justamente por objetivo flexibilizar o controle, o porte e a obtenção de armas no Brasil. 

Com esta nova lei, caso venha a ser aprovada, o cidadão terá muito mais facilidade em adquirir uma arma de fogo, utilizá-la e não dar satisfação a ninguém. 

Nunca o lobby das armas no Brasil encontrou momento tão propício para sua livre atuação. Site norte-americano repercutido no Brasil pela Forum revela como a família Bolsonaro foi financiada pela indústria das armas dos Estados Unidos, aliada a um fundo de investidores de Boston

Dessa forma, Bolsonaro e sua sanha armamentista apenas revelam interesses escusos por trás da intenção de encher o Brasil de armas de fogo. Trata-se de mais um mercado capitalista a ser explorado com grande potencial num país onde o conflito, a violência, as desigualdades, e os crimes de homofobia e misoginia são os campeões mundiais. Trata-se, na ótica dos mercadores da morte, de uma grande oportunidade de ganhar dinheiro. 

Quais seriam as consequências, para a esquerda, de uma proliferação de armas de fogo no país? É possível tirar proveito da situação?

A meu ver, não seria muito diferente do que já é hoje. Se por um lado, a proliferação de armas de fogo pode potencializar homicídios no espectro social (há, no entanto, a possibilidade de ser ao contrário, como veremos), no espectro político, as esquerdas e movimentos sociais já são vítimas há muito tempo de grupos armados. Basta ver que o Brasil é o recordista mundial de assassinato de ambientalistas, sindicalistas rurais, onde a polícia atira com armas de fogo em protestos pacíficos, e o exército usa a esquerda como inimiga em suas operações de treino de guerra.  

A esquerda liberal faz campanha contra o desarmamento. Mas esses agentes têm na cabeça um país idealizado onde a segurança pública é uma função do Estado que funciona plenamente, onde os policiais não atuam de maneira ideológica, onde o interesse é apenas prover tranquilidade e justiça. Nesse mundo de paz e harmonia, qualquer proliferação de armas de fogo representaria uma perturbação deste modelo, atrapalhando nosso bem estar e nossa segurança. 

É óbvio que este mundo da fantasia não existe. O Brasil tem por característica histórica a violência e a segregação de amplas parcelas de sua população, cuja vida não tem o mesmo valor de outras camadas mais privilegiadas. Negros são dizimados aos montes nas comunidades carentes pela guerra às drogas, mulheres são assassinadas e estupradas numa média obscena por "cidadãos de bem", homossexuais apanham violentamente ou são mortos por grupos de defensores da família. Para essas vítimas, a utopia da segurança pública não existe. 

Quem sabe se, armados, com porte legal, prontos a se defender, esses grupos hoje afligidos pela violência e o descaso possam fazer valer seus direitos plenos à vida? 

Isto quer dizer que eu estou ao lado dos bolsonaristas que apoiam o porte de armas? Não, absolutamente, não. 

É preciso entender que eu apoio a interpretação que o prof. Akhil Amar, da Universidade de Yale, dá ao texto da segunda emenda da Constituição dos Estados Unidos, onde as entidades de defesa da posse de armas vão buscar seus argumentos. O comentário foi divulgado pelo advogado ligado aos direitos humanos Bruno Alves no site Esquerda on line

Ao contrário destes que usam a segunda emenda para propagar a posse e o porte individual de armas de fogo, o prof. Amar afirma que a emenda, uma herança da época que a burguesia era revolucionária, na verdade trata do direito da sociedade se armar contra os abusos de um governo despótico. Trata-se, portanto, de um direito coletivo, não individual. Segundo Bruno Alves, 

A interpretação dada pela indústria armamentista à Segunda Emenda é uma interpretação abusiva. Desvirtua por completo sua intenção original. A indústria bélica norte-americana tão somente desvirtua a ideia original com o fim de vender mais armas. Dando uma leitura de que seria um Direito individual, quando não é. Trata-se de um Direito coletivo, da sociedade civil contra o Estado.

Dando uma interpretação baseada na segunda emenda de acordo com o professor Amar, grupos minoritários ou de negros e mulheres poderiam muito bem se armar para usar da legítima defesa contra a violência cotidiana de que são vítimas no Brasil. Isso provavelmente teria o efeito de diminuir a violência contra esses grupos, e não de aumentar. Além disso, movimentos sociais como o MST poderiam se proteger contra o ataque dos jagunços do grande latifúndio. 

Se por um lado a maior proliferação de armas pode atender o lobby da bala, por outro pode ter uma consequência indesejada para os setores conservadores do país: uma população cansada de esperar pela justiça burguesa, que aprende a se defender por si mesma.  

E você, o que acha deste assunto? Deixe sua opinião. 





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