Ainda sobre o polêmico livro do MEC

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Quando saíram na imprensa informações sobre o livro do MEC que incentiva alunos da Educação para Jovens e Adultos (EJA) a falar com erros de concordância, eu escrevi aqui sobre o assunto. Mas um mestre em Letras escreveu um comentário no post e me questionou: “tu chegaste a ler o "polêmico" capítulo do livro do MEC? Sabes qual é o título?” Eu confesso que quando escrevi o post não havia lido o capítulo “polêmico”, e corri atrás pra lê-lo na íntegra e ver se eu tinha dito alguma bobagem. Então vamos agora para uma análise mais aprofundada do assunto.


A tendência de Organizações Não Governamentais (ONGs) terem maior atuação política nasceu quando o neoliberalismo tornou-se dominante, especialmente no Brasil. Pela ideologia do Estado mínimo, o Governo deve abrir mão de produzir diretamente certas atividades, entregando a responsabilidade nas mãos de iniciativas privadas e ONGs, muitas delas com certo direcionamento e interesse político voltado para suas próprias demandas. Assim, por exemplo, a defesa de cotas raciais em Universidades é feita por organizações como a ONG Criola, que surgiu em 1992, filha direta deste novo panorama. Mais ou menos neste período de implementação do sistema neoliberal, surge a ONG Ação Educativa, responsável pedagógica da publicação Por Uma Vida Melhor, alvo de toda esta celeuma nos últimos dias.
Neste livro há o capítulo denominado “Escrever é diferente de falar”. Se toda a polêmica sobre o livro fosse em torno dessa afirmação, eu diria que os autores simplesmente pensaram que descobriram a pólvora e ele não teria ganho tamanha repercussão na mídia. Mas ao contrário do que os autores querem fazer crer, a norma culta, apesar de ser usada — e não poderia ser diferente — foi rebaixada ao nível de mais uma entre tantas outras variedades da língua, daí a polêmica. O que uma criança em plena formação pode concluir a respeito disso? Vejam estes dois exemplos:
Neste capítulo, vamos exercitar algumas características da linguagem escrita. Além disso,vamos estudar uma variedade da língua portuguesa: a norma culta.
Como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes,para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário.
Dito estrategicamente desta forma, a norma culta, que deveria ser prestigiada numa instituição de ensino, pois os alunos não precisam ir para a escola para aprender outra coisa, é considerada uma mera variedade. Atenção, a norma culta não é uma variedade da língua. Ela é o padrão da língua. As outras tantas formas de se expressar é que são variedades deste padrão da língua, e assim notamos como a norma culta foi desprestigiada no livro para se enquadrar no mesmo patamar de tantas outras formas “adequadas” e “inadequadas”. Que finalidade tem esse tipo de conduta?
Como eu disse antes e continuo dizendo, a norma culta ainda é a única aceitável em audiências, entrevistas, concursos e etc. Se a proposta é, como parece, fazer com que as crianças possam usar o idioma correto de acordo com o ambiente, a primeira coisa que deveria ser revista é o incentivo aos erros de concordâncias, como “nós pega o peixe”. Que a criança fale assim entre amigos e familiares é mais do que compreensível, mas são coisas que a escola não deveria incentivar, porque muitos destes erros são frutos justamente de uma má formação escolar. Deveria fazer parte de suas funções zelar pela língua, que é patrimônio nacional, não custa nada lembrar.
Outro equívoco inaceitável do livro é querer colocar estes erros no mesmo nível de regionalismos, o que não é verdade. Se fizermos um cruzamento com os dados, eu tenho plena convicção de que tais “formas alternativas” são na verdade decorrência de uma má formação educacional, como os próprios autores admitem, e não fruto de uma variante espontânea da língua que nasceu e se desenvolveu naturalmente.
A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais,próprias de cada região do país. Elas são perceptíveis na pronúncia, no vocabulário (fala-se “pernilongo” no Sul e “muriçoca” no Nordeste,por exemplo) e na construção de frases. Essas variantes também podem ser de origem social. As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização.Por uma questão de prestígio —vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular.
Em vez de incentivarem e cobrarem melhor educação para as classes sociais menos escolarizadas, defendem que seus erros de concordância, fruto justamente de má educação, se chame “variedade popular”. Sendo a língua um instrumento de poder, como admitem, o melhor que poderiam fazer é armar as classes sociais com esta ferramenta, e não defenderem seus erros gramaticais. Me perdoem insistir, mas erros de concordância não são a mesma coisa que regionalismos, não mesmo.
Pra finalizar, um último equívoco:
Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.
Aqui, tenta-se, mais uma vez, colocar norma culta e “norma” popular no mesmo patamar. Os autores sugerem que os alunos “dominem” as duas variedades. Mas, peraí: aonde existe a “norma” popular? Quem a escreveu? Quais são suas regras gramaticais? Como “dominar” uma “norma” dessas?
É lógico que não existe norma na linguagem popular. As pessoas falam como bem entendem, de acordo com seu grupo social e com a informalidade do ambiente, reinventando diariamente e espontaneamente seu idioma. O que eu volto a dizer aqui, é que é isso é perfeitamente normal e aceitável. O que não podemos de jeito nenhum tolerar, são os erros que as pessoas cometem porque não foram devidamente educadas e só sabem se expressar desta única forma, e que ainda chamem isso de “norma popular”. O livro defende que as pessoas devam usar o vocabulário de acordo com o ambiente. Muito bem, parabéns pra eles. Podem começar entendendo o seguinte: o livro é a ferramenta da norma culta, que deve ser prestigiada e usada na escola. Assim eles fazem melhor para estes alunos do EJA do que incentivar seus erros gramaticais.






Comentários

  1. Grande Almir, seu post é brilhante! É exatamente o que eu penso. E é reconfortante ver um professor de História sendo contra tais absurdos enquanto várias professores de Português se dizem a favor.
    Posso utilizar este texto em sala de aula, com meus alunos, e passar a meus amigos professores?
    Abraço!

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  2. Fala meu amigo,


    Fique a vontade para usá-lo onde e quando quiser.

    Um grande abraço e um ótimo fim de semana!

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  3. Olá, querido Almir!!!

    Meu Deus! Agora a Língua Portuguesa virou 'variedade'? Ah, não! É por isso que não se preza mais por nada. Todos os valores perderam-se em nome da simplicidade? Que simplicidade é essa que prega a DESFIGURAÇÃO de uma língua? Aaaah, faça-me um favor!

    Seu post é estupendo!

    P.S: obrigada pelo apoio...

    T.S. Frank
    www.cafequenteesherlock.blogspot.com

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  4. Oi Almir, tudo bem?
    Muuuito bom este teu post, completa com perfeição a ideia do outro e se torna definitivamente ilustrativo.

    rrrrr... esse assunto me dá raiva! Agora é padrão despadronizar...!!!!??? Que loucura! Se coloca em livro, ou seja, uma coisa escrita em papel, que é um documento com registro para lembrar, erros crassos como se fosse uma opção viável! Ridículo!
    Lembrei-me de outra música, a do Ultraje a Rigor:
    "Agente somos inútil".
    Não concorda?

    Beijão

    Humoremconto
    http://anaceciliaromeu.blogspot.com

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  5. Oi Cissa!

    Pombas, agora eu fiquei triste comigo mesmo por não ter tido a ideia de ilustrar este post com o video desta música! rsrs

    Como a nossa querida TS disse ali em cima, não se preza mais por nada. Tudo agora é revisto, desconstruído, mudado, facilitado, desregrado... em nome de quê eu não sei, porque não sei se estamos indo para algo melhor.

    Eu gostei quando me citou lá nas suas aventuras pela Argentina, foi muito legal rsrs

    Grande beijo e um ótimo fim de semana amiga querida!

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  6. Olá.

    Amigo, você foi um pouco(?) equivocado no seu texto. Você, como professor de história, deveria saber pelo menos algo sobre a história da gramática brasileira, para depois poder tecer comentários como "a norma culta...é o padrão da língua" ou " porque muitos destes erros são frutos justamente de uma má formação escolar" e outros comentários que mostram falta de conhecimento na área.

    Pois saiba que a gramática brasileira tem orgiem de Portugal, portanto, ela é bem adequada para os portugueses. Assim como o latim extinguiu-se e deu origem a outros idiomas, como o português, o português também deu origem a uma outras linguas, que são as faladas no Brasil. Você acha que o Portugal deveria continuar a usar as gramáticas de latim? Será que o Brasil deve continuar usando a gramática portuguesa(de Portugal)?

    Você afirmou que as variantes linguisticas são erros originadas da má formação dessas pessoas. Ora, convido-lhe a pensar nas seguintes perguntas que você mesmo fez a respeito da norma popular daqui do Brasil: aonde existiu a “norma” popular em Portugal? Quem a escreveu? Quais eram suas regras gramaticais? Como eles “dominaram” aquelas “normas”? Mas veja a diferença entre as duas.

    Enfim,aspessoas não estão entendendo o real objetivo do livro tratar esse assunto e parece que não têm o mínimo de conhecimento em Linguística, que é a ciência da língua.

    Visto que você "defende o rigor científico",convido-lhe a pesquisar sobre linguística, antes de tecer alguns comentários "obscurantistas e superticiosos" sobre a nossa lingua.

    De seu leitor, Maishead.

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  7. Olá Maishead,

    Desde que a polêmica foi lançada, curiosamente aqueles que defendem o afrouxamento do rigor da norma culta são justamente os mesmos que se dizem doutores da língua, ou que ao menos recomendam os ditos cujos para embasar suas críticas. Isso não quer dizer muita coisa, visto que a língua portuguesa não se restringe apenas à área da linguística, ela atravessa diversas outras questões, sejam históricas, nacionalistas, e etc.

    Ora, eu achava que a gramática brasileira há muito tempo se desvinculara da de Portugal, sendo até por isso mesmo preciso um recente acordo ortográfico para tentar resgatar alguma sincronia entre as duas gramáticas, mas se voce diz que a gramática brasileira ainda tem origem direta em Portugal, deve estar baseado em alguma fonte segura...

    Esse seu trecho a seguir me deixou intrigado:

    "Assim como o latim extinguiu-se e deu origem a outros idiomas, como o português, o português também deu origem a uma outras linguas, que são as faladas no Brasil. Você acha que o Portugal deveria continuar a usar as gramáticas de latim? Será que o Brasil deve continuar usando a gramática portuguesa(de Portugal)?"


    Parece que você considera a hipótese de institucionalizar as diversas formas de falar do brasilero, tornando-as normas gramaticais. Deve considerar, além do mais, a língua portuguesa de vertente brasileira mera corrupção do português de Portugal, assim como este fora do latim. Mas acontece que logo estas línguas românicas ganharam um padrão, que eliminou as diversas formas diferentes de se escrever a mesma coisa. O Português de Portugal logo que o país se tornou uma nação, ganhou o rigor gramatical da norma culta, assim como a gramática brasileira. A questão de erros de concordância é um problema totalmente distinto deste que levanta. É o desrespeito à nossa norma culta brasileira. Por isso que é completamente descabido suas perguntas: aonde existiu a “norma” popular em Portugal? Quem a escreveu? Quais eram suas regras gramaticais? Como eles “dominaram” aquelas “normas”?

    Com relação ao seu convite final, eu agradeço, mas minhas críticas são dirigidas ao objeto específico, que é o livro analisado, não aos fundamentos da linguística em si.

    Grande abraço e obrigado pela participação.

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  8. Olá (de novo),

    Bem amigo, eu até arrisco escrever aqui que você não procurou saber sobre alguns conceitos de linguística, estou certo? Eu citei a linguística, pois ela é a CIÊNCIA da lingua, então esse tipo de questão seria mais bem discutido pela área, e sei que você defende as ciências. Mas se você deixa de fora os fundamentos da linguisttica ao analisar esse assunto específico do livro, então não irá muito longe com a curta visão que dispões.

    Não fiquei feliz ao ler que você acha que a gramática brasileira já se desvinculou da de Portugal. Ora, a gramática(lingua formal ESCRITA) brasileira é praticamente igual a de portugal e a de qualquer país cujo idioma é o português, mudando apenas algumas coisas. O que eu acho que você quis dizer, e o que é correto, foi que a lingua FALADA é diferente de um pais para o outro.

    Quero citar esse trecho em especial: "Parece que você considera a hipótese de institucionalizar as diversas formas de falar do brasilero, tornando-as normas gramaticais." Na verdade isso foi feito pela já citada ciência da língua. Existe hoje uma gramática baseada na fala dos brasileiros. Foi levado em conta aquilo em que aparece mais em comum na fala dos brasileiros.

    Pense um pouco - o que nasceu primeiro: a fala ou a gramática? Não achas que o segundo é consequência do primeiro? A gramática deveria ser baseada na fala(língua) das pessoas e não o contrário. É claro que na ESCRITA se deve tomar todo o cuidado para ser o mais claro e "entendível" possível. Então nesse caso deve-se ter o apoio de regras que ajudarão as pessoas a redigir os seus textos. Mas estas regras deveriam ser baseadas na nossa lingua, a flada aqui no Brasil e não em Portugal. Existem tantas regras da gramática normativa inúteis, que acabam só enchendo linguiça e atormentando a mente de muitas pessoas com "decorebas". Por que o "correto" é dizer "dê-me um beijo" e é errado falar e escrever "me dá um beijo"? De que proveito será decorar o que é uma oração subordinada substantiva completiva nominal, além de ser para passar num concurso ou na matéria de português, porque enfim insistem em cobrar isso às pessoas? Esse foi só um exemplo de muitos que mostram tais regras inúteis. Então, uma reforma no ensino da lingua portuguesa é imprescindível.

    Só para finalizar, insisto que você procure ler o livro "Preconceito linguístico - o que é, como se faz", de Marcos Bagno. Vale a pena lê-lo.

    É sempre bom discutir temas que valem a pena.

    Abraço e até a próxima.

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  9. Rapaz, por um acaso eu vou ler mesmo este livro. Todo mundo me recomenda.

    Talvez eu até escreva aqui sobre ele.

    Grande abraço

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