A persistente presença autoritária na democracia tutelada brasileira

Constituição Federal de 1988

Em 1988, o país promulgou a sua primeira Constituição pós-Ditadura, aquela que viria a ser chamada de Cidadã – em seus artigos realmente existem muito mais menções a direitos do que a obrigações – e que até hoje vigora. Se, de fato, a Carta Magna trouxe avanços incontestáveis, em pelo menos três áreas o país não conseguiu avançar num ritmo aceitável: na regulamentação das comunicações, na Reforma Agrária e nos entulhos autoritários da época da Ditadura que, por pressão dos militares, foram mantidos ou inseridos no documento.

A influência militar na Carta Magna de 88


A Constituição de 1988 falhou miseravelmente em democratizar as relações civis-militares no período pós-Ditadura, pois a longa transição para a democracia, sob a tutela das próprias Forças Armadas, que se consideram fiadoras da Nova República, propiciaram um ambiente perfeito para a manutenção de muitas prerrogativas castrenses. Podemos atestar essa condição em diversas situações: no acordo secreto que Tancredo Neves teve que fazer com os militares, para poder assumir o poder, conforme revelação posterior de Paulo Maluf i; o veto peremptório das Forças Armadas a Ulysses Guimarães, quando da morte de Tancredo e do debate posterior sobre a quem cabia a sucessão; a barração pelos militares de uma Assembleia Nacional Constituinte para redigir exclusivamente a Constituição, já que permitiram apenas um Congresso Constituinte para manterem o poder sob sua influência, conforme afirmou posteriormente o então senador Fernando Henrique Cardoso ii.

O dedo dos militares nas comissões da Constituição


Criada para organizar os relatórios das comissões que tinham a incumbência de redigir a Carta Magna, a Comissão de Sistematização era presidida pelo deputado Bernardo Cabral, um político com estreitas ligações na caserna. Era quem dava a palavra final sobre as oito grandes comissões e várias subcomissões. Uma destas importantes comissões, a da Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, que tratava especificamente dos assuntos militares, ficou a cargo de Jarbas Passarinho, então coronel da reserva que fora ministro de Costa e Silva, Médici e Figueiredo, além de signatário do famigerado AI-5. Não bastasse, tanto Cabral quanto Passarinho foram ministros da Justiça no governo Collor, zelando cuidadosamente para que ninguém ousasse contestar os elementos autoritários da então jovem Constituição Federal.

Mas, o mais zeloso deputado em nome das Forças Armadas, curiosamente, sabia tanto de assuntos militares quanto de mecânica de automóvel – ou seja, nada, conforme confessou em certa ocasião, o que não o impediu de atuar pelos interesses dos militares quando presidiu a Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança: Ricardo Fiúza fazia parte da bancada conservadora chamada de Centrão, também fazendo parte da turma do governo Collor. Sob suspeita de corrupção, escapou de uma cassação por falta de quórum no Congresso. Foi quem fez pressão para manter as PMs subordinadas ao Exército na Constituição de 88, fato que se reflete nos perenes militarismo e autoritarismo da democracia brasileira.

Por tudo isso, a nossa atual Constituição manteve intactos os entulhos autoritários da Ditadura na forma de cláusulas referentes às Forças Armadas, polícias militares estaduais, sistema judiciário militar e segurança pública de modo geral, cujas consequências veremos indicadas nas postagens abaixo, e que até hoje lutamos para superar. 

GLO: na falta de uma guerra, as Forças Armadas se tornam polícia

Garantir a “lei e a ordem”, papel das Forças Armadas?

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i Todas as informações dessa postagem foram extraídas do livro FHC, forças armadas e polícia, de Jorge Zaverucha.

ii FHC, mais tarde, negou em nota ter dado tal informação, mas o jornalista Marcelo Beraba tinha o depoimento gravado e publicou a transcrição confirmando o relato.





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