O Economicismo na análise social do Brasil
N
esta última postagem da série que vem analisando, até aqui, o último livro publicado pelo sociólogo brasileiro Jessé Souza, A Tolice da Inteligência Brasileira, vamos analisar uma das vertentes que o autor critica em sua publicação, juntamente com o culturalismo conservador, por não contribuir com um melhor entendimento sobre as questões mais profundas dos problemas brasileiros: o economicismo.
O economicismo de cunho marxista
Segundo Jessé, “o economicismo é a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos” (p.109, grifo meu). Segundo o sociólogo de vertente weberiana, tanto as correntes liberais quanto as marxistas de cientistas sociais e economistas ajudam a disseminar essa falsa ideia no senso comum, ajudando a ocultar outros fatores mais decisivos na explicação dos problemas sociais.
O autor analisa, de forma mais contundente, o trabalho de dois autores marxistas: Francisco de Oliveira e seu livro Crítica à razão dualista, e Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil. Vamos focar na sua crítica a Oliveira, pois parece que a discordância maior com Florestan se dá mais porque o famoso sociólogo paulista “não se liberta completamente do culturalismo brasileiro” (analisado neste blog em postagens anteriores) do que pelo seu suposto economicismo marxista.
Em resumo, a maior discordância de Jessé com relação a Oliveira se dá pela suposta impossibilidade de se construir uma teoria crítica do capitalismo brasileiro dentro do contexto de referência teórico do economicismo, tanto liberal, quanto marxista, no caso de Oliveira. A explicação de Oliveira não consegue justificar, segundo Jessé, a “reprodução simbólica da realidade social”:
[Francisco de Oliveira] não consegue perceber o principal: que os atores, individuais ou coletivos, produzem e reproduzem consensos sociais que não são mera decorrência de interesses econômicos. Esse é o verdadeiro limite de toda forma de economicismo, que é tão cego que sequer percebe que a própria ação econômica já pressupõe todo um universo simbólico composto por pressupostos jurídicos, emocionais, pulsionais, morais e políticos. Todos esses aspectos possuem um peso relativo considerável e uma positividade própria quando se trata de efetivamente compreender qualquer ação individual ou coletiva.
Aqui Jessé nitidamente inverte a teoria marxista. Segundo pode-se compreender nesta citação, é a superestrutura que definiria a estrutura — econômica — e não o contrário. Que as ações humanas estão, em grande parte, fora da dependência das questões econômicas, têm uma “positividade própria”… Levado até as últimas consequências, seria como se os homens primitivos, em vez de estabelecerem trocas de produtos como uma de suas primeiras atividades em sociedade (fator econômico) fundassem tribunais, centros de estudos, governos, etc… Difícil de aceitar, não?
Como alternativa ao economicismo, Jessé vai buscar em Pierre Bourdieu a “teoria dos três capitais”. Na tentativa de superar a análise marxista do capital, que para Jessé, ficou limitada, Bourdieu propõe além do capital econômico, o capital cultural e o capital social.[next]
O capital cultural
O capital cultural seria tudo aquilo que aprendemos e que de certa forma é valorizado nas sociedades modernas, pois a reprodução do capitalismo exige conhecimentos e técnicas. O curioso da crítica do capital econômico marxista feita por Jessé é que ele afirma, que a classe média, por não possuir grande capital econômico como os ricos, “compra o tempo livre” dos filhos — ou seja, investe na sua formação para que não precisem trabalhar desde cedo, como nas classes mais baixas. Não estaria aí o capital econômico na base do capital cultural? Ou, traduzindo na linguagem marxista: o econômico não está na base da superestrutura ideológica que determina o que uma pessoa deve saber para estar bem colocada no processo das relações de produção? Esta é apenas uma das ponderações que fazemos na crítica do “economicismo” marxista feita por Jessé.
O capital social
Também o capital social faz parte da teoria bourdiana. É o capital das relações pessoais. “É este capital que permite aquele amálgama específico entre interesses e afetos, tão necessários para a gênese e reprodução das amizades casamentos e alianças de todo tipo no interior de uma classe”. A grosso modo, são pessoas das classes médias e altas, ricas e muito ricas que produzem uma teia de relações sociais entre elas, em torno de interesses mútuos. Mas, mais uma vez, ao contrário do que enxerga Jessé Souza, vemos o puro interesse econômico na base de todas essas relações. Todos querem, em última instância, manter ou aumentar seus patrimônios e riquezas, e os meios que encontraram foram esses, casamentos, fusões de empresas, associações, e etc.
Não quero negar as excelentes contribuições da teoria dos capitais de Bourdieu utilizada por Jessé Souza para a crítica do economicismo, que algumas vezes pode, sim, ser limitador. Mas gostaria de chamar a atenção para o fato de que é injusto colocar o marxismo como uma ciência determinantemente economicista. Apesar de alguns autores marxistas focarem demasiadamente nas questões econômicas e esquecerem de analisar as chamadas superestruturas, o próprio Friedrich Engels já fazia este alerta no tempo em que viveu, numa carta a Joseph Bloch, em setembro de 1890:
[next]De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infra-estrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma. Há uma interação entre todos estes vetores entre os quais há um sem número de acidentes (isto é, coisas e eventos de conexão tão remota, ou mesmo impossível, de provar que podemos tomá-los como não-existentes ou negligenciá-los em nossa análise), mas que o movimento econômico se assenta finalmente como necessário.
Dessa forma, podemos ver como, apesar da base da estrutura social estar assentada no econômico, há uma interação entre esta base e vertentes da superestrutura, que geram fatores que podem, portanto, não parecerem ter relação com o econômico. Não é este o caso, por exemplo, dos capitais “culturais” e “sociais” de Bourdieu? Não está a ideologia dominante determinando o que é culturalmente válido de se buscar e socialmente vantajosas de manter, com a única finalidade de preservar seu lugar de privilégio na luta de classes? E que privilégio é maior do que manter o status econômico?
Não estamos dizendo que a base determina tudo, mas é a relação da base econômica com as instâncias da superestrutura — conhecimento cultural, relações sociais, etc — que está perfeitamente contemplada na teoria marxista, como atesta Engels. Portanto, a crítica do “economicismo marxista” feita por Jessé Souza em seu livro soa bastante equivocada, o que não tira o brilho da análise social muito bem feita, e que foi resenhada aqui no nosso blog de forma detalhada em quatro postagens sobre o assunto.
De fato, é inegável que diversos autores e pensadores brasileiros ajudam a perpetuar nossas mazelas sociais ao ocultá-las em falácias com a chancela científica. A contribuição de Jessé é desmascarar esses engodos, desnudá-los perante a opinião pública, e explicar por que desvia-se do problema primário do Brasil, que é a brutal desigualdade social, para focar em questões secundárias. Excelente livro que vale a pena a leitura.
Veja as publicações anteriores:
[post_ads]
Muito bom. Também concordo que a teoria marxista não pode ser colocada como "economicista" a piori. Tem muitos autores que fogem desse determinismo, que não é próprio da teoria marxista
ResponderExcluirOlá Diógenes,
ExcluirVocê tem toda razão. Nos anos 60 os autores marxistas focavam realmente no econômico, mas de uns tempos pra cá, houve uma espécie de volta às origens.
Um grande abraço.