A Casa de Papel, opinião pública e a perigosa destruição de reputações

 

"Berlim", o líder dos sequestradores na casa da moeda

A Casa de Papel voltou a ser assunto nesta semana, por conta da exibição dos últimos episódios da última temporada na Netflix, que encerrou uma das mais bem sucedidas séries do streaming. Aproveitando isso e o fato de eu estar assistindo esse fenômeno de popularidade pela primeira vez, com atraso, eu venho trazer uma discussão: qual o limite de uma autoridade pública mentir deliberadamente para conseguir algum suposto benefício do bem comum? 

O tópico em questão foi inspirado num evento ocorrido no oitavo episódio (a partir de 24:09) da primeira temporada. Naquela ocasião, os investigadores e a equipe policial tinham acabado de descobrir a identidade de um dos líderes dos assaltantes-sequestradores, que usava o codinome Berlim. 

A partir daí, a negociadora da polícia, Raquel, decidiu que usaria a imprensa para jogar a opinião pública contra os delinquentes, vazando a ficha criminosa do "excêntrico" Berlim, angariando apoio para uma possível ação mais contundente. 

É quando, então, o chefe da inteligência espanhola presente indica que a ficha do criminoso talvez não seja suficiente, sugerindo a inclusão arbitrária de crimes como cafetinagem e tráfico de mulheres. Raquel, concordando, ainda incrementa com "tráfico de mulheres internacionais com menores" e dedo-duro da polícia que alcagueta os parceiros — no que o chefe da inteligência, satisfeito, afirma: "gostei do seu estilo". 

Imaginando que tal situação ocorra na vida real — como certamente há de ter ocorrido em diversas oportunidades, sem sombra de dúvidas — você acharia correto que autoridades utilizassem esse artifício, mesmo que seja por uma boa causa? 

Certamente há os que irão argumentar que vale tudo para prender bandidos. Quem se preocuparia com a reputação de alguém que invade a casa da moeda e faz vários reféns? No entanto, há outros que afirmariam que mentir não é o papel das autoridades, em nenhuma ociasião. E eu estou com essas. 

O poder delegado pela sociedade aos agentes públicos precisa constantemente ser vigiado, controlado, cerceado, porque, livre, esse monopólio da força fatalmente degenerar-se-ia para o autoritarismo violento, numa escalada que começa assim: de forma simples, com uma mentira sobre a reputação de um criminoso qualquer que ninguém se importa, e quando menos se espera, pode chegar a criar factoides com o intuito de prender um candidato a presidente popular odiado pelo status quo, cujos membros dominam as polícias, a justiça, o ministério público, a imprensa e todas as esferas de poder. 

Quando damos carta branca às autoridades e não exercemos nosso poder controlador (aliás, a grosso modo, foi exatamente com esse intuito que Montesquieu sugeriu a separação do poder em três), quando não nos importamos quem cai nas garras da polícia, dos exércitos e de toda a tirania, acontece como no famoso poema de Bertold Bretch 

Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso. Eu também não era operário. / Depois prenderam os miseráveis, mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável./ Depois agarraram alguns desempregados, mas como eu tenho um emprego, também não me importei. / Agora... Agora estão me levando. / Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.

Esse poema, à primeira vista, fala da indiferença contra quem não nos importamos. Mas, olhando mais a fundo, vemos ali a sanha da autoridade em exercer seu poder violento contra os cidadãos, desde que tenha total liberdade para tal. 

O erro das pessoas é pensar que a arbitrariedade sempre vai se circunscrever a todos aqueles com quem não nos importamos — e nunca chegará a nós. 

Sobre a necessidade de regular a mídia e a polícia

Por isso é tão perigoso que instituições que ostentam tanto o poder de destruir reputações de desafetos perante a opinião pública — como a imprensa — quanto o de encarcerar ou matar — como a polícia — tenha carta branca da sociedade para agir livremente. 

No mundo ocidental as empresas de mídia já são razoavelmente reguladas, e esse debate agora é que surge com mais força no Brasil, não obstante a resistência, óbvia e esperada, dos próprios meios de comunicação. Mas pouco se discute o controle externo da polícia, contumaz em casos de denegrir a reputação de suas vítimas como justificativa para a matança desenfreada de negros e pobres nas comunidades carentes, sob a passividade satisfeita das camadas médias urbanas. 

Esse ano de 2021 foi pródigo, em se tratando de episódios terríveis de ações policiais que terminaram em chacinas em pleno vigor da restrição de operações por parte do Supremo Tribunal Federal. Constitucionalmente o controle externo das polícias é exercido pelo Ministério Público, mas os escassos casos em que os abusos são condenados e punidos mostram a deficiência desse controle. Como afirmou a deputada estadual (Psol/RJ) e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, Dani Monteiro

...transcorridos mais de 30 anos desde a promulgação de nossa carta magna, nem mesmo os membros do Ministério Público a entendem como prioritária, como demonstrou pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com membros do MP em diferentes estados. O estudo apontou que 88% dos promotores e procuradores de justiça não compreendem o controle externo da atividade policial como atuação prioritária do órgão. A mesma pesquisa apontou ainda que, para 42% de seus membros, o controle da atividade policial pelo MP é ruim ou péssimo e 35% avaliaram como regular atuação ministerial na área.

Reforçando que, junto a um maior controle externo das polícias, é preciso regular também as mídias, para acabar com o clima de medo que programas policiais (proibidos, por exemplo, no Uruguai) como Brasil Urgente, Cidade Alerta e outros, fomentam na população, induzindo as polícias a terem carta branca para prender e matar quem quiserem. 

Hoje as classes médias e as elites não ligam quando as vítimas do arbítrio autoritário são as classes pobres. Mas é bom sempre lembrar do poema de Bretch... 





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