Vivendo uma rotina de violência, carioca recorre à sua única arma: o sarcasmo

A irreverência do carioca em situações desfavoráveis é conhecida desde, pelo menos, a chegada da família real portuguesa na cidade, em 1808. Naquela ocasião, o Rio de Janeiro contava apenas com 50 mil habitantes, convivendo já com graves problemas estruturais. 

Do dia para a noite, Dona Maria, Dom João e sua recém-chegada corte  acrescentaram um contingente extra de 15 mil almas na cidade, que precisavam ser alocadas em residências imediatamente. Devido à falta de moradas disponíveis, a metrópole estabeleceu compulsoriamente as casas que os moradores locais deveriam abandonar para receber os portugueses. Era pintado um PR ("Príncipe Regente") nas portas destas casas, indicando quais deveriam ser disponibilizadas. Mas, entre o populacho, começou a circular o rumor que esta sigla significava, na verdade, "Ponha-se na Rua", um típico exemplo de como a ironia ajudava a aliviar, de alguma forma, o sofrimento imposto. 

As décadas seguintes, porém, assistiram a uma iniciativa de estruturação e urbanização por parte de Dom João, melhorando bastante a vida dos moradores — pelo meno na região central. 

O Rio de Janeiro, por ser capital do Império, e, mais tarde, da República, ainda conseguiu manter a capacidade de investir em melhorias pari passu ao aumento da população na cidade. Isso, até sofrer dois golpes fatais: a transferência da capital do país para Brasília em 1960 e depois a fusão da cidade da Guanabara com o Estado do Rio, em 1975, sem consulta popular. A partir dessa data, o Rio de Janeiro vem experimentando um estado lento e contínuo de decadência política, econômica e social, que se reflete nos níveis cada vez mais acentuados de pobreza e violência. 

Tal como no século XIX, porém, convivendo com diversas mazelas modernas — na política, a eleição de uma sequência de governadores que viriam a ser condenados e encarcerados por corrupção; na economia, o esvaziamento industrial, o desemprego em massa; a disputa de territórios entre o tráfico e as milícias; a informalidade espalhada em todos os lugares que estorva o comércio formal; na segurança pública, uma escalada de violência crônica cada vez mais presente no cotidiano — o carioca se vê obrigado a exaltar sua própria resiliência

Com a disseminação dos smartphones, esta realidade, antes restrita às comunidades carentes, é filmada nas ruas a todo momento e divulgada nas redes sociais, criando uma imagem bastante negativa da cidade do Rio, antes reconhecida por outras características mais louváveis. 

A reação do carioca, bastante compreensível, foi levar a situação calamitosa para o lado da galhofa, tirando sarro de situações graves, violentas e lamentáveis, como podemos ver no exemplo abaixo: 


 Outro caso famoso, dentre tantos outros que surgem todos os dias, foi durante o sequestro de um ônibus na ponte Rio-Niterói em 2019, que terminou com a famosa cena do governador do Rio na ocasião, Wilson Witzel, descendo de helicóptero comemorando o desfecho do sequestrador morto pela polícia, como se fosse um gol da seleção. Durante o sequestro, os motoristas se comportaram como se estivessem num grande piquenique: 

 

O sarcasmo foi a forma que o carioca, impotente, escolheu para lidar com as situações absurdas cada vez mais comuns no dia a dia. É normal vermos este tipo de conteúdo ser publicado com as frases "O Rio de Janeiro não é para os fracos", "O Rio não é para amadores", "só os fortes sobrevivem na cidade maravilhosa", e coisas desse gênero. O famoso escritor Milan Kundera já dizia em seu livro Um Encontro, que o humor é o último refúgio do ser humano diante da barbárie. No entanto, é fácil perceber que esta normalização da violência, e até uma glamourização de uma vida cotidiana absurda podem levar a um conformismo inaceitável.

Diante de uma vida cada vez mais hostil, vão rompendo-se cada vez mais os laços de civilidade e humanidade. Passamos a viver numa grande selva urbana, onde a anomia prevalece sobre quaisquer acordos de conduta, onde a dor do outro vira uma grande piada, onde uma falsa bravura é exaltada diante de situações de perigo totalmente condenáveis. 

Nossa aceitação da decadência e da violência cotidiana só favorece uma pequena parcela dominante da sociedade que, em vez de trabalhar para resolver uma situação de grave crise econômica, prefere agarrar-se a seus parcos privilégios, enquanto se fecha cada vez mais em seus condomínios com cara de base militar, defendendo que a polícia faça o trabalho sujo de impor a ordem social aos mais pobres através de quaisquer meios disponíveis. 

Antes de tentar acabar com a violência em si, é preciso acabar com a normalização da violência na cabeça do cidadão carioca. 




Comentários

  1. Ótimo texto sobre a atual situação das terras cariocas, como você mesmo citou que, outrora já foi lembrada por "outras características mais louváveis."
    A questão da banalização da condição extrema que o povo vive e o sarcasmo com aquilo que deveria ter-se mais atenção, extrapola, às vezes, o limite do aceitável em se transformar em "piada".
    A aceitação do carioca a estas condições mostra um povo sofrido que, de tudo ri para não chorar, já está beirando a insanidade no sentido de não saber mais o que é certo ou errado. Certa vez ouvi um comentário que o nativo deveria mudar seus gentílicos de "carioca" e "fluminense" para simplesmente "sobrevivente".
    Um abraço King Gilgamesh.

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    1. Fala meu camarada Diego,
      É verdade, o grande risco que corremos quando as regras da sociedade já começam a perder o sentido, é cair num grande abismo onde as pessoas já não tem mais noção do que é certo e do que é errado. Afinal, se coisas cada vez mais absurdas são consideradas normais, imagina alguns pequenos desvios de conduta do dia a dia..
      O problema é saber onde isso vai parar..
      Grande abraço meu chapa!

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  2. Até nisso o Rio de janeiro pode ser considerado o reflexo do Brasil, essas coisas tão acontecendo também em outros lugares, as pessoas tão conformadas com uma vida dura e também se sentindo sem capacidade de mudar; Aparentemente o voto que as pessoas dão não tem capacidade de mudar muita coisa e isso deixa as pessoas cada vez mais descrentes de tudo;

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