Sam Harris deveria ter permanecido calado

A militância ateísta nos Estados Unidos cresceu e se tornou atuante na medida em que o fundamentalismo cristão aumentou assustadoramente naquele país nos últimos anos. Seitas neopentecostais e pastores fanáticos influenciaram milhões de norte-americanos a abandonar os preceitos racionais e científicos para tomar como verdades as parábolas editadas num livro supostamente sagrado, escrito por um povo bárbaro na Era do Bronze há mais de dois mil anos.

Os Cavaleiros do Ateísmo

Os Quatro Cavaleiros do Ateismo

Quatro destes militantes se destacaram merecidamente no combate ao irracionalismo religioso, com suas palestras e livros publicados, formando o que seus críticos denominaram “Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo”: os ingleses Christopher Hitchens – escritor e colunista radicado nos EUA, falecido em 2011 –, Richard Dawkins – de família inglesa, nascido em Nairóbi e educado desde pequeno na Inglaterra, biólogo – e os estadunidenses Daniel Dennet, filósofo, e Sam Harris, filósofo e neurocientista.

Brilhantes no ateísmo, medíocres nos assuntos políticos

Se no campo do combate ao obscurantismo se destacaram de forma incontestável, o mesmo não pode se dizer quando alguns deles se aventuram no campo político.

Já tinha acontecido com Hitchens, um ex-progressista de esquerda que, no fim da vida, se tornou neoconservador e que, em 2011, condenou publicamente Julian Assange, fundador do WikiLeaks, como criminoso por divulgar documentos secretos das Embaixadas dos Estados Unidos que denunciavam práticas ilegais. Ele também não se furtou a apoiar desde o princípio a insana guerra no Iraque promovida pelo governo George W. Bush, e mesmo depois da divulgação de que os pretextos que serviram à guerra eram falsos -- Saddam Hussein não possuía armas de destruição em massa -- não mudou de opinião.

E agora aconteceu de novo, quando Sam Harris resolveu atender aos apelos para sair de cima do muro e dar alguma opinião sobre o mais recente conflito na Palestina. E era melhor ter permanecido calado.

 

 

 

Isso é o que acontece quando sobra militância ateísta incondicional contra religião, mas falta compreensão político-histórica para entender do que se está falando. Mesmo no caso de Hitchens, um profundo erudito e conhecedor da História, ao deixar sua aversão ao fundamentalismo islâmico afetar seu julgamento sobre a legitimidade de uma guerra contra o Iraque. O mesmo erro comete Harris. De repente Israel se tornou o campeão do laicismo lutando contra fundamentalismo islâmico, e, no fundo, talvez devêssemos todos até agradecer a eles (!), pois afinal, do que se trata a guerra na Palestina senão a luta dos bonzinhos secularistas judeus contra os malvados fundamentalistas islâmicos? Então tudo bem, esqueçam os abusos, os crimes, é tudo por uma causa maior… Às vezes os judeus erram o alvo e acertam “uma ou outra” criança, mas claro, sem querer, porque se eles pudessem eles matavam todas. E só porque eles não matam todas de uma vez está provado que eles são legais, pois a intenção maior é defender o mundo do obscurantismo dos muçulmanos, mesmo com estes pequenos efeitos colaterais...

  Leia também: WikiLeaks e o lado perverso de Christopher Hitchens

Certamente, por causa de coisas assim, o prestígio de Sam Harris jamais transbordará as fronteiras restritas do ateísmo. Diferentemente de outros livre-pensadores, inclusive de Daniel Dennet e Dawkins, ganhadores de prêmios da Bertrand Russell Society por seus valores humanistas (Hitchens teve seu nome vetado para o mesmo prêmio) Sam Harris se preocupa em analisar uma questão repleta de implicações políticas e humanitárias sob uma perspectiva limitada, pra não dizer equivocada: a luta da razão versus religião. Equivocada porque Harris ignora as bases religiosas que fundamentam o sionismo e o Estado de Israel. E por isso que, apesar de brilhantes no combate ao obscurantismo, alguns dos Cavalheiros do Ateísmo não merecem nossos ouvidos quando se aventuram a opinar fora de suas áreas de atuação.





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