Catástrofe Climática, Imperialismo e a Grande Fome do século XIX



Essa é uma história pouco contada pelos historiadores. A história de três catástrofes humanitárias causadas pela seca na Ásia e em outras partes do mundo, na segunda metade do século XIX, que poderiam ter sido evitadas. Poderiam, se, para a infelicidade dos pobres camponeses das regiões afetadas, esta também não fosse a era do Imperialismo Europeu. Em nome do liberalismo econômico e da economia de mercado, produziu-se um verdadeiro holocausto humano de 40 milhões de vítimas da Fome, enquanto a Europa prosperava em abundância.

Embora o fenômeno do El Niño (e da La Niña) só tenha sido melhor compreendido no final da década de 1960, as instabilidades de temperatura do Oceano Pacífico já afetavam as condições climáticas desde sempre no mundo, afligindo a vida do Homem, especialmente o do camponês que depende da terra e das chuvas para plantar e colher.

Durante as épocas de prolongada seca, certas comunidades aprenderam a amenizar o sofrimento com um sistema econômico que previa o armazenamento e a distribuição dos grãos para os mais atingidos durante os períodos críticos. A segunda metade do século XIX iria, no entanto, assistir à deterioração desse sistema.

O Imperialismo Europeu e as maiores secas de que se têm notícia na história da humanidade iriam operar em conjunto no final do século XIX, desestruturando o sistema camponês definitivamente, para a consolidação à força do sistema liberal de economia de mercado. Como bem destacou Rosa Luxemburgo numa análise de 1913:
Cada nova expansão colonial é acompanhada, como de praxe, por uma inexorável luta do capital contra as ligações sociais e econômicas dos nativos, que também são forçosamente espoliados dos seus meios-de-produção e força de mão-de-obra. […] A acumulação [de capital dos países produtores capitalistas], com sua expansão espasmódica, não pode mais esperar nem se satisfazer com uma desintegração interna natural das formações não-capitalistas e sua transição para a economia de mercado […] A força é a única solução disponível para o capital; a acumulação de capital, vista como um processo histórico, emprega a força como uma arma permanente…
E foi assim que o capital se desenvolveu de mãos dadas com o Imperialismo, através da força ou da ameaça da força. Sob os auspícios de dirigentes ingleses ou pessoas locais ligadas a eles, a Ásia foi conectada numa posição subalterna ao jogo da economia mundial. Especialmente na Índia britânica, mas também na China, no norte da África e em outras regiões do Império Britânico, a Fome causada pelas grandes crises climáticas de 1876-79, 1889-91 e 1896-1902, que prejudicaram a colheita dessas regiões durante décadas, dizimou por volta de 40 a 50 milhões de pessoas em poucos anos. Mas esse holocausto humano poderia ao menos ter sido infinitamente amenizado.

Os grãos que foram colhidos em regiões menos atingidas da Índia, por exemplo, poderiam abastecer as cidades onde a calamidade era urgente. No entanto, milhões tombaram de fome ao lado das grandes ferrovias britânicas, que conduziam trens abarrotados de grãos para os portos sob os olhares do povo faminto, e de lá para o mercado de Londres. Como afirmou um dos poucos historiadores a tratar com profundidade do tema, Karl Polanyi em 1944:
A quebra das safras, claro, fazia parte do quadro, mas o transporte de grãos por ferrovias possibilitaria o envio de socorro às áreas ameaçadas; o problema era que as pessoas não tinham meios de comprar o milho a preços em vertiginosa ascensão, o que em um mercado livre mas mal organizado tinha de ser uma reação à escassez. Em tempos anteriores, os pequenos depósitos locais haviam-se protegido contra colheitas insuficientes, mas agora se achavam fechados ou absorvidos pelo grande mercado.
Os impostos imperiais, as exportações de grãos e os abusos exorbitantes da nova lógica econômica smithiana (escassez = aumento de preços) agravaram a situação dos camponeses. Muitos venderam suas pequenas propriedades, a roupa do corpo e até os filhos em troca de um punhado de grãos. O cenário era de horror, com corpos esquálidos e famintos rastejando em meio a mortos no meio das ruas. O “socorro” dos imperialistas muitas vezes só agravava a situação. Dezenas de milhares morreram nos campos de trabalho ingleses depois de caminhar dias em busca de trabalho e uma ração alimentar insuficiente. É claro que os imperialistas europeus, bem como os japoneses e americanos tiraram proveito da situação. Cada região afetada pela Fome era mais uma colônia em potencial, onde terras comunais eram desapropriadas e mão-de-obra para as minas eram selecionadas.

O novo modelo econômico mundial implementado à força em regiões agrícolas da Ásia foi, portanto, um dos maiores responsáveis diretos pela Grande Fome que dizimou milhões de pessoas no final do século XIX, numa época de secas jamais vistas. Essas pessoas não estavam de fora do sistema; elas estavam dentro, fazendo parte das engrenagens do capital, sendo vítimas dele. Na Era de Ouro do capitalismo liberal, a humanidade das regiões exploradas enfrentou uma de suas piores provações de todos os tempos. Como se pode explicar essa contradição, senão pelo fato de que a miséria e a fome são justamente partes intrínsecas do próprio sistema sem as quais uma pequena minoria não poderia se rejubilar de todo o conforto e riqueza que o dinheiro é capaz de proporcionar?

Fonte: DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Clima, Fome e Imperialismo na Formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002




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