Política e Religião: por que foram separadas e por que devem continuar assim
A ideia de laicidade, Estado laico, etc. é muito recente no Ocidente, e ainda mais no Brasil. Começou a ser praticada, de fato, no século XIX, depois de milênios em que tanto a política quanto a religião estavam fundidas numa coisa só. Para entender por que um grupo de intelectuais e filósofos europeus propôs a separação entre essas duas esferas no passado recente, precisamos entender como era então o mundo antes dessa ideia prevalecer.
“Governo divino”
Teocracia: assim é a definição grega para os Estados em que o poder advinha da chancela religiosa. Desde os primeiros reinos da Antiguidade na Mesopotâmia, o governante era considerado legítimo se os sacerdotes da religião oficial assim o agraciassem. Sendo tanto os religiosos do templo quanto a família do governante membros das altas castas da sociedade, membros da elite, é fácil compreender como a religião foi instrumentalizada para ocultar acordos políticos entre famílias poderosas e para o conformismo das massas.
A Idade das Trevas: poder absoluto da Igreja
Com o advento da Igreja Católica durante o Império Romano, aos poucos o cristianismo foi sendo difundido entre as tribos invasoras europeias, seus antigos deuses satanizados e Jesus Cristo passando a ser o legitimador do poder, primeiro do Bispo de Roma, agora chamado papa, e depois, também de cada governante dos pequenos reinos que se formavam na Europa, com a queda do Império. Os católicos romanos foram hábeis em manter a religião oficial cristã entre os bárbaros mesmo com o desaparecimento do poder central de Roma.
Durante a Idade Média, as circunstâncias fizeram a educação formal desaparecer até entre os nobres, a maioria analfabetos — inclusive o grande Carlos Magno, que assinava seus documentos com um K —o que acabou delegando aos clérigos o monopólio do saber (e do poder, consequentemente). Bispos tornaram-se então arrogantes, autoritários, corruptos e, obviamente, destruíam quaisquer crenças que pudessem rivalizar, e portanto, ameaçar seu status privilegiado. Foi assim, entre outros casos, que os católicos massacraram até a morte o último cátaro na França, por praticar um tipo de cristianismo heterodoxo.
A ciência começa a derrubar a hegemonia religiosa
Com a chegada da época que ficou conhecida como Renascimento até a era contemporânea, alguns aspectos desses superpoderes autoritários e violentos religiosos começaram a ser questionados com mais importância. Uma série de eventos minou o poder católico até então intocável. Desde os estudos científicos da Bíblia por Espinoza (até então só os clérigos podiam interpretar a Bíblia, jamais um “leigo”); passando pelas descobertas astronômicas de Galileu; a cisão protestante de Lutero; até a revolucionária teoria da evolução das espécies de Darwin, o mundo mudou bastante, e pra melhor! Mas o principal evento ocorreu no final do século XVIII com a Revolução Francesa, em que, pela primeira vez, foi determinada a separação oficial entre a religião e a política.
De fato, ambas são esferas totalmente incompatíveis. A religião fomenta o sectarismo, o pensamento único, a crença em verdades dadas e inquestionáveis. A política, pelo menos a democrática, pressupõe o convívio das diferentes ideias, o debate, a busca pela verdade embasada em argumentos verificáveis. A política visa o bem comum, e não somente daqueles que professam tal ou qual crença. Por tudo isso a separação dessas esferas foi uma conquista que possibilitou a paz e o desenvolvimento que a Europa hoje em dia desfruta, quando deixou pra trás, há muito tempo, suas guerras religiosas.
Os caminhos tortuosos do laicismo no Brasil
No Brasil, o Império surgiu tendo como religião oficial o catolicismo na época em que ela já era contestada na Europa. Só eram eleitas para as Câmaras pessoas desta religião, de acordo com a Constituição de 1824. Não eram permitidos outros cultos, a não ser no ambiente doméstico.
Com o advento da República em 1889, oficialmente, pelo menos no papel, o Brasil passou a ser um Estado Laico. Mas se durante nosso período republicano já havia controvérsias quanto a esse laicismo na prática, a Constituição de 1988, atualmente vigente e que não traz uma vez sequer o termo “Estado Laico” em seus artigos, tratou de colocar mais dúvida nas nossas cabeças, tendo em vista sua incoerência:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifo meu)
Essa falta de clareza na definição do laicismo estatal permitiu a ascensão recente de uma bancada neopentecostal no Congresso que representa o contrário de tudo o que a Constituição defende e o que há de pior na política: são faltosos, a maioria responde por algum tipo de crime, são radicais, não defendem toda a sociedade e sim a parcela que comunga de suas ideias, proliferam o ódio e o preconceito, usam fiéis como massa de manobra, sua agenda é conservadora e reacionária a qualquer tipo de proposta social, atacam adversários com fantasias infantis com o “diabo”… Ou seja, um mal que a Europa se livrou mas que ainda nos fustiga, por uma falta de rigor na definição dos limites entre religião e Estado no Brasil.
Aos poucos, tais defensores da fé evangélica saem do parlamento para tentar a sorte no executivo. Um deles é Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, candidato a prefeito, que traz na bagagem nada menos do que o tio Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e Anthony Garotinho, convertido evangélico depois de um acidente, e responsável por diversos inquéritos sobre sua conduta na política. Não podemos deixar que este período de convergência entre religião e política possa voltar das trevas de onde foi deixada. Representa um retrocesso, um desrespeito à diversidade e à pluralidade de ideias que devem prevalecer em todas as sociedades democráticas. Nenhum segmento da sociedade pode ter algum tipo de privilégio sobre os demais, e por isso o laicismo, que não se confunde com ateísmo e sim com a defesa de todas as religiões e o privilégio de nenhuma, deve estar sempre na linha de frente de nossas bandeiras. Não ao Estado neopentecostal!
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